LOC: tão estranho, tão amigo!
Por Marcelo Lemos
Não
esqueço a estranheza de ter diante de mim, quando pela primeira vez, as páginas
do Livro de Oração Comum. Havia
já participado de alguns cultos ricos em liturgia, como nas poucas vezes que
visitei a Catedral Evangélica de São
Paulo (Presbiteriana Independente), ou nas ocasionais visitas a Igreja
Romana. Mas, elas todas foram um participar da experiência dos outros, não algo
especialmente pessoal e significativo. Porém, desde minha primeira leitura no LOC,
havia o desejo nascente de fazer parte da espiritualidade ali contida – o que,
provavelmente, alimentou a estranheza mencionada. É que almejava aquela
espiritualidade, e seria desonesto não admitir o choque daquele primeiro
encontro.
Permitam-me falar de estranheza, mesmo aquele primeiro
contato sido precedido de um bom preparo intelectual. Mas, devo dizer que não
foi um choque movido por preconceitos, do tipo que vê na liturgia formal as
garras 'demoniacas' de um Vaticano satanizado e onipresente (risos). Um choque
muito mais estético que teológico, eu diria. Foi como ter passado a vida
inteira ouvindo música popular para, de repente, deparar-se com a Nona Sinfonia
de Beethowen. Leva certo tempo para os ouvidos se adaptarem. Foi um me sentir
manco, impotente, e despreparado para assumir aquele novo compromisso. Sim,
compromisso, e não apenas uma curiosidade intelectual feito Capitu.
Essa inicial estranheza – aqui abro um parêntese -
me tornou um pouco mais paciente com aquele cristão mediano que nutre algum
tipo de preconceito para com o Anglicanismo, ou para com a Liturgia Reformada.
Há preconceituosos desonestos, ou ainda os intransigentes. Com estes já comprei
algumas brigas. Contudo, há certo preconceito, ou até mesmo certo receio sobre
a matéria, e que é movido pelo medo do desconhecido. Não é triste saber que
justo o Anglicanismo, primeira Igreja Reformada a colocar os pés em solo
Brasileiro, seja hoje tão estranho e distante a nossa gente? É verdade que
aportamos por aqui, nos tempos do Império, sem autorização para evangelizar os
brasileiros, mas isso é coisa do passado, não? "Que Igreja é essa?",
é a pergunta atônita que quase invariavelmente recebo ao ser questionado sobre
o que somos. Há, claro, também aqueles que simplesmente respondem com um "Que
legal!", a fim, suspeito, de não deixar transparecer que nada sabem do que
estou falando... Desse ou daquele jeito, essa ou aquela dúvida, sempre uma
oportunidade. Fecha.
Tais
fatos implicam, também, e ainda mais importante, em certa reflexão. Desde o início
tive medo de não dar conta do desafio de me tornar uma pessoa
"liturgica", e claro, de educar uma Igreja a ser
"liturgica". Culpa daquela estranheza que falei no inicio. Mas não
só. Some-se também certa preocupação pastoral. Por onde começar? Como lidar com
os preconceitos e objeções que poderiam surgir? Honestamente, nossa experiência
com a Comunidade Anglicana Carisma é algo tão recente que ainda
estou a procura de tais respostas. Não obstante, julgo que alguns princípios
teológicos gerais me auxiliarão nessa busca. Primeiro, que meu objetivo como
pastor de almas não é "anglicanizar" as pessoas, mas evangelizá-las. “Que
é isso de anglicanismo?” não é mero convite à História, mas ao coração do
Evangelho. Segundo, que não existe antídoto melhor contra o preconceito, e a
ignorância, que uma adequada educação; neste caso, estou especificamente pensando
em catequeze. Acredito que tais princípios me ajudarão a não me apresentar como
portador de novidades, ou de modismos, e me permitirá pesar corretamente as prioridades.
Evidente que sonhamos uma Igreja tão apegada a espiritualidade anglicana quanto
seja possível, porém, muito mais desejável é uma Igreja espiritualmente
saudável.
Longe
de nós insinuarmos que relegamos o LOC a um segundo plano, tornando-o projeto
paralelo ou inferior. Ressalte-se isto: que desde nossa primeira reunião temos
sido acompanhados por este amigo ao mesmo tempo tão estranho e tão útil. Nossa
geração valoriza aquilo que é imediato. Somos a geração do descartável. Nada
fazemos que tenha a intenção de durar, e isso inclui, de certo modo, nosso
cristianismo e nossa adoração. Será que alguém imagina que nossas inovações
doutrinárias e liturgicas durarão até a próxima década? E nossos discos de
ouro? Há, no entanto, na espiritualidade anglicana, sintetizada no Livro de Oração Comum, um quê de
continuidade e de pertença, que nos remete a algo que existe desde séculos
antes de nós, e sobreviverá muito além de nosso tempo. Talvez sejam sentimentos
que escapem àqueles ainda não tocados pela catolicidade
da fé cristã, e desprovidos da devida consciência histórica do Legado que a
Igreja a nós confiou - mas fica feito o convite!
Quando
oramos o Pai Nosso ou recitamos
alguma confissão de fé histórica, como o
Símbolo dos Apóstolos, ou o Credo
Niceno, somos convidados a lembrar de que centenas de gerações fizeram a
mesma coisa antes de nós, século após século, e que milhares de cristãos deram
suas vidas por essa Fé. Ainda que seja salutar adorarmos a Deus ‘embalados’ ao
som de uma canção moderna, é na alma milenar de hinos como Kyrie Eleison, e outros tão importantes quanto, que nos fazemos uma
só voz com a Igreja de sempre. Não inventamos o cristianismo, nem somos o
"último biscoito do pacote" - apenas continuamos, apenas pertencemos
a algo muito superior a nós e ao nosso tempo.
Há,
além disso, na liturgia anglicana - e também em outras liturgias reformadas -
um grande senso de "ordem e descência". Tudo está em seu
devido lugar, e desempenha um papel claro e específico - o que nos remete a
outro inegável benefício: a saber, que tudo é feito para a edificação do corpo
de Cristo. Vamos pensar nas Coletas. Elas não são vãs repetições, como alguns
podem suspeitar, antes, são verdadeiras mensagens bíblicas, além de confissões
apaixonadas de nossa fé em Deus e em Cristo. Que tal nossos sermões? Bem, aqui
há grande espaço para a habilidade ou inabilidade de cada um, no entanto, há pouco
lugar para modismos e inovações, e quase lugar algum para o improvisso
irresponsável que alguns pregadores tanto praticam. Isso acontece porque, de
acordo com o LOC, a Igreja segue um calendário anual, que estabelece um roteiro
de leituras e doutrinas bíblicas que deve ser seguido pelos pastores – havendo,
de certo, liberdade para que o pastor local ‘fuja’ do Lecionário devido a
alguma necessidade pastoral específica. E aquela história de fechar os olhos e
escolher a primeira passagem que der na telha? Pode esquecer querido pregador:
uma vez que se torne parte desta espiritualidade histórica e reformada, isso
não mais te pertencerá. Ordem, decência, e edificação. É disso que se trata a
liturgia prescrita pelo nosso Livro de Oração Comum.
Não
é demais repetir que somos uma comunidade nascente, e, portanto, sem um grande currículo
ou experiência para compartilhar. Trata-se, tão somente, do modo como estamos
tentando lidar com aquilo que para nós é novo. Dito isto, tentaremos demonstrar
alguma coisa de prático. Algo que temos julgado muito útil para nós é a reunião
de Estudo Bíblico e Liturgia. Essas reuniões, que acontecem no Sábado -
ou seja, um dia antes do Dia do Senhor - tem por finalidade promover o
conhecimento bíblico e o apreço a liturgia reformada. É, colocando de outro
modo, um evento de formação teológica. Não há nada de ‘sofisticado’ no roteiro:
(1) nos reunimos para metidar nos textos bíblicos, e no tema sugerido pelo
Lecionário; (2) aproveitando para ensaiar e analisar, histórica e
teológicamente, os elementos liturgicos que farão parte do culto no dia
seguinte. Outra utilidade desta reunião é escolher e ensaiar os hinos que serão
entoados durante o culto, além de adequar a escolha ao tema litúrgico
apropriado. Quanto aos temas bíblicos estudados, já planejamos fazer algo
dedicado ao estudo dos 39 Artigo da Religião, e, depois, a algum dos
grandes catecismos da Fé Reformada (o Catecismo
de Heidelber parece a escolha natural). Por hora os estudos são baseados
nas leituras prescritas no Calendário Liturgico.
É
aqui, nessas reuniões de ‘Estudo Bíblico e Liturgia’, que temos a maior
oportunidade de manter a prioridade sobre a evangelização. Isto porque,
para muitos dos que já estão conosco, bem como dos que Deus conduzirá a nós,
não apenas a liturgia anglicana é novidade, como também as verdades centrais da
Fé Cristã, especialmente as Doutrinas da Graça. Que perigo seria investir em
algo que poderia tornar-se apenas ritual belo, rico, plástico, mas de pouco
valor espiritual! Sim, quão lamentável seria, pois não há na Fé Reformada lugar
para ritualismo, ainda que exista lugar para a liturgia. Vale ler os ensinos do
Bipo J. C. Ryle sobre o assunto.
Espero,
sinceramente, que estas observações sirvam para desmistificar um pouco o tema, especialmente
para aqueles irmãos que, como eu, estão chegando de alguma tradição cristã mais
despojada; ou acostumados a uma liturgia mais informal ou mesmo 'de improviso'.
Sei que há entre os autores desta revista * gente com muito mais autoridade
sobre o assunto, e com muito mais experiência a respeito. Certamente há. Almejo,
porém, ter dado minha pequena contribuição. Se acontecer a você o mesmo
estranhamento que me acometeu, lembre-se: o Livro de Oração Comum pode
nos fazer sentir como estranhos no ninho, mas em pouco tempo poderá se revelar
um valioso esouro de espiritualidade, teologia e fé.
*
Artigo escrito para a primeira edição da Revista Anglicanos, publicação
gratuita da Latimer Press. Com pouco mais de duas semanas a revista já ultrapassou a barreira dos mil leitores, obrigado a todos!
Marcelo
Lemos, Bacharel em Teologia, pastor da Comunidade Anglicana Carisma, editor do
blog teológico Olhar Reformado,
casado e pai de dois filhos.
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