O mito da LXX. Doutor Biblia Responde!


Por Marcelo Lemos

A resposta de hoje já deveria ter sido redigida, mas, devido a um lapso meu, acabei me esquecendo da questão feita pelo querido irmão Vinícius Alves Ricardo: “a Septuaginta existiu mesmo?e as teses fundamentalistas acerca delas?”

Antes de responder, peço desculpas a você, Vinícius, pela demora em responder, realmente, havia me esquecido de sua pergunta, e a perdi em meio a tantos e-mails que recebo diariamente. Aliás, foi por isso que coloquei o formulário de perguntas: é mais fácil para o leitor, e ajuda na minha (des)organização, já que o Google mantém todas as questões em um banco de dados. A todos os leitores, sugiro paciência, pois são muitas questões, e as vezes, devido ao que as pessoas nos contam, agente acaba tendo que priorizar mais algumas delas. No entanto, na medida do possível, desejamos responder a todos, e isto faremos, se Deus nos permitir.

Quando, ainda adolescente, comecei me aprofundar mais no conhecimento de Deus (através das Escrituras), não pude fugir do incomodo de perceber algumas discrepâncias nas citações que o Novo Testamento faz do Antigo. Sem grandes conhecimentos teológicos, acabei encontrando a explicação clássica: tais discrepâncias ocorrem, pois os apóstolos utilizavam uma versão grega do Antigo Testamento, que conhecemos pelo nome de Septuaginta (LXX).

É um argumento a ser considerado, já que das cerca de mil citações que o Novo Testamento faz do Velho, perto de quarenta não condizem com o texto hebraico, mais sim com o texto grego. Em algumas traduções, as discrepâncias não são muito visíveis, pois os tradutores utilizam no Velho Testamento a ajuda da LXX.

A título de ilustração, citarei apenas um exemplo do que estamos falando:

Mateus 1.23 3 Isaías 7.14. O evangelista Mateus fala de uma profecia sobre a “virgem” que conceberá, mas o texto hebraico fala de uma “jovem” que conceberá. Aqui nasce uma discussão teológica, já que 'jovem' não implica, necessariamente, em 'virgem'. Mateus escolheu 'virgem', que é justamente a tradução que podemos encontrar na LXX.

A explicação de, haver nos tempos apostólicos, uma versão grega do Antigo Testamento em circulação é bem plausível, mas, há quem considere tal afirmação uma blasfêmia, ou baseada em um mito.

Um movimento fundamentalista nascido nos Estados Unidos, defende a tese chamada KJV-Only. Trata-se da opinião de que única Bíblia inspirada e autorizada para os dias de hoje seja a Versão do Rei Tiago (King James Version). Como a KVJ foi traduzida do texto hebraico chamado Textus Receptus, natural concluírem que qualquer tradução feita a partir de outra família de manuscritos, ou mesmo em conjunto com outra família de manuscritos, seja pecaminosa, ou até mesmo satânica.

Aqui no Brasil existe a mesma teoria, que defende ser a Bíblia Almeida Corrigida Fiel, a única versão inspirada e autorizada para o uso da Igreja. Todas as demais Bíblias são, não apenas criticadas, mas satanizadas. A sigla mais comum aqui utilizada é “Só-TT”, ou “Só-TR” (significa: só aceitamos Bíblias do Texto Tradicional, ou do Texto Receptus).

Vale lembrar, porém, que nem todo cristão fundamentalista é “KJV-only”, ou “Só-TT”. Entretanto, até onde tenho visto, os “Só-TT”, costumam chamar os demais de “falsos fundamentalistas”. A fonte mais abrangente sobre tal ponto de vista, em língua portuguesa, é site Sola Scriptura, do irmão Hélio.

Abordei, resumidamente, minha opinião sobre tais questões, no texto “A melhor versão das Escrituras”. Sugiro a leitura, aos que desejam conhecer meu posicionamento sobre o tema das traduções.

Que tudo isso tem haver com a Septuaginta?

Se alguém me diz possuir uma tradução bíblica perfeita, e que é a única autorizada para uso dos cristãos, e, além disso, nenhuma nova tradução é necessária, espera-se não encontrar nenhum problema textual em tal tradução. Então, como os KJV-Only explicam o fato de que diversas citações do Novo Testamento não concordam exatamente com o texto hebraico? E mais: como explicam que quando o Novo Testamento discorda do texto Hebraico, concorda com o texto grego (LXX)?

Caso admitam que os autores do Novo Testamento fizeram uso de uma tradução grega, eles automaticamente destroem a alegação de possuírem uma tradução perfeita, e unicamente autorizada. Portanto, precisam escapar da explicação tradicionalmente aceita para o problema. Eles fazem isso em dois pontos:

Primeiro, alegam que onde o Novo Testamento discorda do texto grego, aconteceu dos autores neotestamentários receberem uma interpretação inspirada do que o texto hebraico realmente queria dizer; assim, eles não apenas citaram o Velho Testamento, como também o interpretaram de modo inspirado.

Segundo, defendem a tese de que a Septuaginta é uma falsificação idealizada por Orígenes, muito tempo depois do Novo Testamento já ter sido completamente concluído.

Precisamos, então, dar uma olhada nos principais argumentos fundamentalistas. Quais são eles?

a) A história da LXX baseia-se apenas em uma lenda sobre 70 judeus traduzindo, simultaneamente, e de modo milagroso, o texto hebraico;

b) Jamais se pode apresentar uma cópia grega do Velho Testamento, que tenha sido escrita antes do ano 300 D.C.;

A LENDA DA LXX

De fato, existe um conto lendário por trás da história da LXX. Difícil acreditar que 72 rabinos a tenham traduzido milagrosamente no espaço de 72 dias... Mas, o fato de alguém ter, a seu bel-prazer, criado uma propaganda enganosa sobre ela, não é o suficiente para negarmos sua realidade, bem mais é preciso.

Se foi, realmente, Orígenes, quem criou a Septuaginta, a fim de validar algumas de suas heresias, e adulterações textuais, como explicar, por exemplo, que Flávio Josepho declare em sua obra que no século III A.C., haver sido realizada por rabinos, uma tradução da Torá para o grego koine?

Claro, a Septuaginta não é só a Torá traduzida para o grego, mas um Antigo Testamento bem mais completo, incluindo livros deuterocanônicos. Todavia, um dos pilares da negação fundamentalista é justamente negar que exista tal coisa, provas de que o Velho Testamento tenha sido traduzido ao grego, antes do Terceiro Século da nossa era.

O relato de Josepho, historiador judeu, não comprova haver um texto tão grande quanto a LXX, mas demonstra que havia, sim, um esforço para se traduzir as Escrituras Hebraicas para linguagem comum daqueles dias.

NÃO HÁ CÓPIAS DE TRADUÇÃO PARA O GREGO, ANTES DE 300 D.C.

Trata-se de um argumento forte, mas é preciso uma boa dose de cuidado aqui. Ainda que não existisse uma única cópia, um único manuscrito, ainda assim, deveríamos olhar o quadro histórico como um todo. Do contrário, deveríamos abandonar até o fato de haver um Novo Testamento escrito antes do ano 100 D.C.; uma vez que as cópias que dispomos do NT certamente não nos levam tão longe.

Ainda que não existissem cópias, permaneceriam os relatos históricos, como o de Flavio Josepho, que foi feito muito antes de Origens nascer, e sem qualquer comprometimento teológico com seus ideais, (evidentemente!).

Nos escritos fundamentalistas existe um grande esforço para se provar tais pontos, ou seja, negar a existência de tais traduções pré-cristas. Infelizmente, acabam fechando os olhos para a História, e falsificando a pesquisa de outras pessoas. Por exemplo, o já citado site Sola Scriptura, convoca o depoimento do erudito Paul Kahle:

Paul Kahle, um famoso estudioso do Velho Testamento que realizou extenso trabalho [de pesquisa] a respeito da Septuaginta, não acredita que houve uma real versão grega antiga [isto é, de antes da era Cristã] e, consequentemente, [acredita que] os manuscritos da Septuaginta (assim chamada) não podem ser rastreados retroativamente até um arquétipo [o padrão ou modelo, original, a partir do qual todas as cópias derivam].

O fato, entretanto, é que a pesquisa de Paul Kanle não conclui que a LXX seja falsa, e nem serve para provar que traduções para o grego não existiram antes da era pré-cristã, muito pelo contrário. A tese de Kahle é que a Carta de Aristeu – a que deu origem a lenda sobre a forma como foi traduzida a LXX – tinha como objetivo, não relatar a história da tradução, mas servir de peça de propaganda em detrimento de outras traduções gregas que também circulavam antes de Cristo! Ora, isso vai muito longe do modo como os escritores fundamentalistas valem-se da pesquisa de Kahle!

Para saber mais sobre a pesquisa de Kahle, recomendo a leitura de sua obra “The Cairo Geniza”, o livro pode ser adquiro no site Amazon.

A impressão que tenho é, devido a sua necessidade de defender um conceito previamente assumido, tais pensadores fecham-se voluntariamente as evidencias, buscando agarrar-se a menor esperança de validar seus pontos de vista. Esta cegueira auto-infligida pode ser ilustrada nas palavras de Peter Ruckman, mentor da tese fundamentalista: “Se mil pedaços de papiro fossem recuperados contendo o Antigo Testamento grego sobre eles, e escritos antes do ano 100 A.C., não poderiam ser usados em favor de uma LXX” (The Christian's Handbook of Manuscript Evidence. pg. 51).Em outras palavras, apenas recusam-se a pensar fora da caixa fundamentalista.

Respeitando a História, concluiremos que, sim, há muito de mitológico por trás da LXX, e devemos rejeitar aquela ideia, sustentada por alguns Pais da Igreja, de que a mesma teria sido traduzida sob a inspiração do Espírito Santo. No entanto, a mesma História nos impede de jogar a mesma no lixo, negando sua existência, e seu valor.

Além do mais, é preciso sempre estar atento ao fato de que o Novo Testamento contém citações da LXX (como demonstramos em um exemplo acima); e, antes deles, a mesma é amplamente utilizada nos escritos de Filos de Alexandria, que morreu antes de se iniciar a redação do Novo Testamento, ou justamente quanto tal redação estava sendo iniciada (20 A.C. - 45 D.C.). “Filo conheceu e meditou a bíblia quase por inteiro, dado que cita passagens de pelo menos dezoito dos livros dos quais ela é constituída, mas privilegiou de maneira absoluta o Pentateuco, ou seja, a lei” - acho difícil imaginar que ele tenha feito isso, citanto o Antigo Testamento em grego, se o mesmo jamais existiu.

Na minha opinião, há uma questão de grande importância para o estudante bíblico cristão: como devemos nos relacionar com a LXX. Penso que o validador da LXX é o Novo Testamento, ou seja, quando o Novo Testamento cita a LXX, devemos preferi-la ao texto Hebraico, pois esta foi a escolha dos autores inspirados. No entanto, a LXX em si mesma, é apenas uma tradução; de modo que, quando difere do texto Hebraico, e não conta com a preferencia dos Apóstolos, nossa opção deve ficar com o texto Hebraico. Afinal de contas, a maior parte das citações do Novo Testamento vem deste ultimo texto.

Sou um grande admirador do zelo fundamentalista pela tradução das Escrituras, e compartilho de muitas de suas preocupações; mas não ao custo de fugir da História, a fim de sustentar pontos de vistas extremos, e jamais imaginados na História do próprio Cristianismo, que pretendemos defender, e divulgar.

Espero, com temor, ter dado alguma contribuição sobre o tema.

2 comentários :

  1. Prezado Marcelo lemos,
    Graça e Paz.

    Gostei da maneira inteligente, isenta e equilibrada com que tratou o tema da LXX, tema que possui ainda uma certa complexidade para mim. Apesar do meu pouco conhecimento sobre o assunto, concordo com você, na discordância deve prevalecer o texto em Hebraico. Louvo a Deus e agradeço pelos esclarecimentos feitos aqui, que me foram muito úteis.

    Deus o ilumine e abençoe este trabalho.

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  2. Na minha biblia, os dois versículos falam que uma virgem conceberá.

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