Versões Bíblicas: Novas Traduções Necessárias?

São Necessárias Novas Traduções?




 Marcelo Lemos

No primeiro artigo desta série, tentamos demonstrar, ainda que de forma despretenciosa, que ao compararmos a Almeida Corrigida Fiel (ACF) e a Almeida Revista e Atualizada (ARA), nem sempre o resultado condiz com a propaganda desta ultima. Em outras palavras, nem todas as vezes a ARA será mais atualizada do que a ACF. E creio que ali mesmo, no primeiro artigo, indiretamente lançamos a base para o nosso argumento de hoje, o qual tentará responder a seguinte questão: são necessárias novas traduções?



Por algum tempo, eu me vi tentado a me unir as vozes fundamentalistas que lutam contra toda e qualquer nova tradução das Escrituras, alegando que já temos uma tradução perfeita da Palavra de Deus. Nos Estados Unidos, estes pensadores apontam a King James Version como sendo a palavra perfeita de Deus; por isso, estes são classificados como “kjv-only”. Aqui no Brasil, os herdeiros e representantes desta ideologia, abraçam a Corrigida Fiel, e normalmente se autodenomina “só-TT”.


Para os não iniciados neste debate, carece explicar o significado de “só-TT”. Uma tradução possível para esta expressão seria: “somos crentes que aceitamos apenas as Bíblias baseadas exclusivamente no Textus Receptus; também conhecido como Texto Tradicional”. Para estes irmãos, qualquer Bíblia que se baseie, ainda que apenas parcialmente, em outro texto grego, não é digna de confiança, e deve ser sumáriamente rejeitada. Para entendermos uma pouco da história destes dois textos, citaremos trecho de um artigo fundamentalista;

O Texto Tradicional




Antes de tudo é necessário compreender o que significa o termo “Texto Tradicional”.

Durante o primeiro século após a ressurreição de Cristo, Deus inspirou homens a escrever Sua Palavra. O resultado foi um grupo de cartas e livros escritos no Grego Koine (chamados ‘autógrafos originais’). Estas cartas e livros foram copiados e recopiados através dos séculos e distribuídos pelo mundo. Essas cópias constituem os manuscritos do Novo Testamento. Mais de 5.000 desses manuscritos sobreviveram até hoje. O grande número destes manuscritos gregos apoiam o que se chama a tradução textual bizantina, bizantina porque procede do mundo todo que falava grego naquele tempo. Estes manuscritos bizantinos constituem o que se chama o Texto Tradicional do Novo Testamento. O melhor representante impresso deste tipo textual bizantino é o Textus Receptus (ou Texto Recebido). Além dos manuscritos, também temos disponíveis muitas obras nas quais os Pais da Igreja citaram os manuscritos. O trabalho de John Burgon estabeleceu que o texto básico utilizado por numerosos Pais da Igreja é o mesmo  texto ora conhecido como o Texto Bizantino.

O Textus Receptus foi compilado ou colecionado de um número de manuscritos bizantinos por numerosos editores desde o começo do ano 1500. Houve edições de editores tais como Erasmo, Stephens,  Beza, e os irmãos Elzevir, Mill e Scrivner. Essas edições diferem  pouco uma da outra, mas ainda são consideradas como o mesmo texto básico. Certas edições eram populares em diversos países e serviram de base para traduções do Novo Testamento. O Textus Receptus (como conhecido mais adiante), foi o texto usado por Tyndale e em seguida pelos tradutores da versão Autorizada Inglesa (Rei Tiago) de 1611 e de outras traduções da era da Reforma.


O Texto Crítico




Durante os séculos XIX e XX, porém, surgiu uma outra forma do Novo Testamento no Grego e é usado para a maioria das traduções do Novo Testamento. Este Texto Crítico, assim chamado, difere largamente do Texto Tradicional, em que omite muitas palavras, versículos e passagens encontradas no Textus Receptus e traduções baseadas nele. As versões modernas baseiam-se num Novo Testamento que provem dum pequeno grupo de manuscritos gregos do século quatro em diante. Dois destes manuscritos considerados superiores ao Bizantino por muitos eruditos modernos são o manuscrito Sináitico e o Vaticano (c. Século quatro). Estes advêm dum tipo de texto conhecido como o texto alexandrino (por causa de sua origem no Egito). Este tipo foi chamado  pelos críticos textuais Wescott e Hort o ‘Texto Neutro’. Estes dois manuscritos constituem a base do Novo Testamento Grego, chamado de Texto Crítico, que tem sido usado em larga escala desde os últimos anos do século XIX. Nos anos recentes houve tentativa para melhorar este texto chamando-o de um texto ‘eclético’ (que quer dizer muitos outros manuscritos foram consultados na sua edição e evolução), mas ainda é um texto que tem por fundamento central  esses dois manuscritos. Fonte: O que o crente de hoje precisa saber sobre o Novo Testamento grego.

Num artigo futuro, abordaremos as diferenças e problemas encontrados nestas duas linhas de textos; e como entendemos que se deve portar perante tal controvérsia. Por hora, citamos estes dados históricos introdutórios apenas para melhor situar aquele leitor ainda não iniciado nestas questões, e que desconhece o que vem a ser TC e TR/TR.

Voltando ao ínicio, temos entre os de fala inglesa fundamentalistas que se definem como “só-kjv”; e em nossa pátria, aqueles que nomeiam “só-TT”; os quais tomaremos a liberdade de definir como “só-ACF” – ou seja, cristãos que aceitam como palavra inspirada de Deus, a tradução Almeida Corrigida Fiel. Provavelmente alguém protestará contra esta definição, todavia, grosso modo, creio ser ela fiel ao teor da discução.

Sendo verdade que a Igreja tem em mãos uma tradução perfeita das Escrituras, e que esta tradução perfeita deve ser a única aceita pelo povo de Deus, parece justo afirmar que novas traduções são absolutamente desnecessárias, e até pecaminosas. Mas, existiria tal coisa como “tradução perfeita”? E, se existe, qual seria a definição de “perfeição”?

Nos dias quando me vi atraído pela tese fundamentalistas, foram estas duas questões providenciais que me impediram de me aligar a estas fileiras. Com efeito, não creio que se possa provar haver uma única tradução perfeita das Escrituras; nem que se possa justificar um critério autojustificável de “perfeição”. Se existem, quais seriam?
Vamos começar pela questão do critério.



Venha comigo a uma viagem imaginária a Terra Santa. Em algum lugar desta cobiçada terra, você eu eu, dois estudantes colegiais gregos, encontramos por acaso uma cópia original da Carta de Paulo aos Romanos. Não se trata de uma edição deixada por este ou aquele copistas, mas sim de um texto com os autográfos de Paulo. Estamos extremamente felizes com o veredito dado pelos especialistas que contactamos – certamente será a descoberta mais importante dos ultimos dois mil anos para as ciencias bíblicas!

Nem bem a noticia se espalhou, e por todo o mundo começam a pipocar protestos e apelos. Todos querem saber o conteúdo da carta. Todos querem, mas nós dois é quem tem os direitos sobre tal descoberta, e estamos dispostos a fazer bom uso dela. Por isso, decidimos que nós mesmos, gregos que somos, iremos traduzir o conteudo desta carta para o mundo.

Quando nossa decisão é anunciada, vários protestos se fazem ouvir. Dentre ele, um que diz:
"A língua grega conforme é encontrada no Novo Testamento  e a língua grega moderna falada hoje na Grécia são tão amplamente diferentes uma da outra ao ponto de não haver qualquer intercâmbio entre elas.

A falsa pressuposição de que um grego estaria equipado por causa de sua nacionalidade a mudar a Bíblia inglesa é humorística,  na melhor, e arrogante na pior das hipóteses". Fonte: Livro das Respostas; Samuel Gipp.

A critica acima é contundente. Ela nos diz que dois estudantes gregos não são capazes de compreender o Novo Testamento grego, só por serem gregos e falarem o grego atual. Por qual razão? Simples: existem diferenças enormes entre o grego usado por Paulo, e o grego que se usa hoje na Grécia! Sendo assim, os dois estudantes gregos se descobrem impotentes diante dos autográfos de Paulo, que acabaram de descobrir.

É neste ponto que entra meu questionamento: aquele autografo de Paulo, nas mãos destes dois colegiais gregos, são a perfeita Palavra de Deus? Sim. Sendo que elas representa exatamente cada palavra e frase que saiu da mente de Paulo, inspirado por Deus, ela é a perfeita Palavra de Deus. Todavia, essa perfeita palavra de Deus, não tem muito valor para aqueles dois colegiais. E o motivo é muito simples: ela é completamente incompreensível para eles! Assim, se faz forçosamente necessário que alguém, mais capacitado, atualize a linguagem que está naqueles autográfos!

Qual o nosso critério de perfeição? Do ponto de vista aqui abordado; isto é, da compreensão, afirmo que uma tradução perfeita é aquela que busca ser compreensível aos leitores atuais! Com isso, não estou querendo justificar alterações e contextualizações absurdas que vemos por aí – estou apenas me atendo ao quesito “compreensão”.

Entendo que se fazer compreensível é uma das maiores preocupações da própria Escritura. Por exemplo, o termo grego methermēneuō, que pode ser vertido como “traduzir, interpretar”, é utilizado várias vezes nos Evangelhos; sempre em contextos nos quais o autor inspirado julgou necessário esclarecer o singificado de uma palavra que poderia ser extranha aos seus leitores;
“Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chama-lo-ão pelo nome Emanuel, que traduzido é “Deus Conosco!” – Mateus 1.23.

“E, tomando a mão da menina, disse-lhe: ‘Talita cumi’; que, traduzido, é: ‘Menina, a ti te digo, levanta-te!’” – Mateus 5.41.

“E, a hora nona, Jesus exclamou com grande voz, dizendo: ‘Elói, Eloí, lamá sabactâni?’ – que, traduzido, é: ‘Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?!’” – Mateus 15.34.

“E Jesus, voltando-se e vendo que eles o seguiam, disse-lhes: Que buscais? E eles disseram: Rabi (que, traduzido, quer dizer Mestre), onde moras? – João 1.38.

“Este achou primeiro a seu irmão Simão, e disse-lhe: Achamos o Messias (que, traduzido, é o Crito)” – João 1.41.

Um passagem famosa do Antigo Testamento, também nos revela a preocupação das Escrituras em se fazer compreensível aos leitores atuais. No nono capítulo do Primeiro Livro de Samuel (I Sam. 9.1-11), encontramos o relato de quando Saul teve que sair a procura das jumentas de seu pai, que haviam fugido. Num determinado momento, ele e um de seus servos, revolvem procurar auxilio no profeta Samuel; que nos tempos de Saul era conhecido como “vidente”. Nem todos os leitores do livro saberiam deste detalhe, por isso, seu autor inteligentemente, inspirado pelo Espírito Santo, se dá ao trabalho de esclarecer as coisas; como se pode ver no versículo 9 da narrativa:
“E o moço tornou a responder a Saul, e disse: Eis que ainda se acha na minha mão um quarto de um siclo de prata, o qual darei ao homem de Deus, para que nos mostre o caminho.  (Antigamente em Israel, indo alguém consultar a Deus, dizia assim: Vinde, e vamos ao vidente; porque ao profeta de hoje, antigamente se chamava vidente). Então disse Saul ao moço: Bem dizes; vem, pois, vamos. E foram-se à cidade onde estava o homem de Deus” – versos 8-10.

Eis aqui, portanto, aquilo que eu tomaria como um critério de perfeição numa tradução das Escrituras: ser compreensível. Alguém poderá questionar: “Mas, e como fica a fidelidade ao texto grego original?”. Esta questão é fundamental, ainda mais que a própria compreensibilidade da tradução. Todavia, neste artigo, estamos analisando apenas a questão da compreensão; assumindo utopicamente que toda tradução visa ser fiel ao texto original. Claro que isso é utopico – de modo que futuramente abordaremos também a questão da fidelidade na tradução. Apesar de não ser nosso tema hoje, este adendo é importante, para não dar a falsa impressão de estarmos colocando a compreensibilidade de uma tradução acima de sua fidelidade ao texto grego.

Assim como os dois colegiais gregos da nossa ilustração não estão aptos a compreenderem a linguagem originalmente utilizada pelos autores do Novo Testamento (pois o idioma está dividido entre o “antes” e o “agora”); acontece de leitores atuais não compreenderem perfeitamente o que nossos tradutores verteram do texto sagrado para o nosso idioma, ou para qualquer outro idioma.

Ilustrando: tente se lembrar em que a filha de Herodias pediu a cabeça de João, o Batizador! Não lhe será muito dificil se recordar que foi um um “prato”, ou numa “bandeja”. É deste modo que nos descreve a cena a versão Corrigida Fiel: “E, entrando logo, apressadamente, pediu ao rei, dizendo: Quero que imediatamente me dês num prato a cabeça de João o Batista” (Marcos 6.25). Todavia, caso você seja uma novo convertido americano, poderá imaginar que a jovem pedira que a cabeça do profeta lhe fosse dada em um cavalo! Observe: “E ela entrou apressadamente ao rei e lhe pediu, dizendo: quero que você me dês imediatamente a cabeça de João Batista num corcel (Marcos 6.25; KJV).

Ainda que nos dias do Rei Tiago, o termo “corcel” tenha tido o mesmo significado que “prato”, ou “bandeja onde se coloca pratos”, o fato inescapável é que, hoje, tal significado simplesmente se perdeu no tempo; assim como o grego koiné, usado por Paulo, perdeu seu significado para o grego de nossos dias! Partindo do princípio da compreensibilidade, acabamos de encontrar uma imperfeição na King James Version – a mesma que, segundo muitos fundamentalistas, seria a única bíblia perfeita e autorizada para o uso dos cristãos fiéis!

Por mais fiel que uma tradução seja ao texto grego, ela não será uma tradução perfeita, se não é capaz de se fazer compreender pelo homem comum. Tal constatação, por si só, já me deixa aberto para a possibilidade e necessidade de novas traduções das Escrituras.

No nosso próximo texto, saíremos a procura de alguma tradução perfeita da Palavra de Deus. Será que a encontraremos? Será que ela existe?

Paz e bem!

2 comentários :

  1. Ainda não li completamente... Mas confesso que já fiquei impressionado com o pouco que li, e "vou chupinhar" para ler posteriormente.

    Um Abraço!

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  2. Estou fazendo a disciplina Exegese do Novo testamento e tenho um trabalho para apresentar nas próximas semnas exatamente sobre qual o melhor texto grego: o bizantino ou o texto critico.

    Este seu artigo foi muito útil e no momento, vai na linha que eu também penso: a importância da compreensão do texto e sentidos originais, sem abrir mão da fidelidade textual.

    Parabéns pelo brilhante, claro e profundo artigo.

    Gostaria de "conversar" mais sobre este tema com alguém que já vem trilhando estes caminhos a mais tempo.

    Fique na graça e na paz do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo,

    Eli Colaço

    Salmo 121

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