Cartas a Lene - Sola Scriptura
Marcelo
Lemos
Recentemente tenho tido
a alegria de trocar algumas ideias com Lene*, uma jovem evangélica na casa dos
20 anos. Gosto do seu fervor, de sua dedicação as coisas da Igreja, e de sua
busca animada por uma vida de santidade. Entretanto, Lene me fez recordar um
fato mais que sabido: ela, como muitos outros evangélicos, pouco sabe sobre os
fundamentos da fé evangélica. Sim, apesar de boa parte daqueles que ocupam as
cadeiras de nossos templos se declararem “evangélicos”, o fato é que pouco sabe
sobre os fundamentos da nossa fé.
Lene, por exemplo,
perguntou-me o que aquela frase estranha, publicada num vídeo em meu site, quer
significar. A frase em questão era “Sola
Scriptura”. Aproveitando a deixa, investido melhor, e percebo que Lene
também não sabe o que quer dizer outras frases clássicas, como “Solo Christus”,
“Sola Gratia”, “Sola Fide” e “Soli Deo Gloria”. E, muito provavelmente, não
saberia me dizer qual o conteúdo do Símbolo dos Apóstolos, apesar de
encontrarmos nele o coração da fé cristã.
Assim, prometi a Lene
escrever-lhe algumas cartas, nas quais estarei discorrendo de modo breve, e quiçá,
prático, a respeito de tais assuntos. Hoje, meu tema é, evidentemente, o Sola
Scriptura.
Lene, apesar de eu
mesmo ter vivido por muitos anos na mesma Denominação que você está hoje, há
coisas que considero extremamente equivocadas. Outro dia você me disse que usa
calça apenas para vir ao trabalho, como se tivesse uma permissão especial para
algo pecaminoso. Também já te vi comentar a mesma coisa a respeito de sua
maquiagem... Outro dia não pude deixar de notar a estranheza das pessoas que
notavam ter você aparado as pontas do cabelo, como se um Marciano de repente pousasse
no escritório. Isso me diz que há em sua religiosidade um punhado de regras e
mandamentos a serem seguidos. A pergunta que fica é: tais mandamentos surgiram
onde? Terá sido nas Escrituras?
Certamente a vida
cristã tem regras e mandamentos. Sabemos disso porque a Bíblia nos diz
exatamente o que devemos fazer, e o que devemos evitar. Estas diretrizes são os
“mandamentos Bíblicos”, ou, na linguagem da própria Escritura, são os
“mandamentos do Senhor”. De fato, segundo S. João, amar e seguir a Cristo são sinônimos
de obediência aos Mandamentos:
“Aquele que diz: Eu o
conheço e não guarda os seus mandamentos é mentiroso, e nele não está a
verdade. Aquele, entretanto, que guarda a sua palavra, nele, verdadeiramente,
tem sido aperfeiçoado o amor de Deus. Nisto sabemos que estamos nele: aquele
que diz que permanece nele, esse deve também andar como ele andou” (I S. João
2:4-6).
Todavia, Cristo
criticou duramente os religiosos que obrigavam outros e a si mesmos a obedecerem
a mandamentos “humanos”, ou “tradições humanas”.
Há uns 500 anos, a
Igreja do Ocidente vivia dias de crise. Então, praticamente só existia uma
grande organização cristã por aqui, a Igreja Católica Apostólica Romana. Quase
todo ocidental nascia cristão, e católico romano. Segundo entendemos, como o
passar dos anos, a Igreja do Ocidente foi incorporando costumes e doutrinas que
fugiram da simplicidade do Novo Testamento. Algumas “tradições humanas” foram
sendo impostas ao povo. Por exemplo, a proibição do casamento dos sacerdotes. O
ministro do Evangelho pode optar pelo celibato, mas deve ser obrigado a tal? A
Bíblia diz que não, mas a Igreja de Roma ignora isso. Ou seja, neste caso, a
Igreja acha que tem mais autoridade que a própria Escritura.
Este é apenas um dos
problemas. Muitas outras questões foram importantes para o surgimento da Igreja
Evangélica: devemos orar pelos mortos? Os santos mortos podem escutar nossas
orações? O cristão que morre em pecado precisar passar pelo purgatório? Quem
tem o direito de legislar sobre as doutrinas da Igreja: a própria Igreja, ou a
Escritura?
Daí surge o lema
reformado “Sola Scriptura”. Os Reformadores entenderam que somente se pobre
obrigar um ensino ou prática de vida caso a Escritura expressamente ordene. Em
outras palavras, se algo não está nas Escrituras, cada cristão pode e deve
julgar por si mesmo, valendo-se da liberdade cristã. Vou tentar um exemplo
prático e chamativo. O que você pensa sobre a Virgindade de Maria, mãe do
Senhor? Provavelmente, sendo evangélica, acredita que depois de dar luz ao
Cristo, Maria passou a ter uma vida sexual comum com seu esposo, Jose. A Igreja
de Roma obriga seus fiéis a negarem isso, afirmando como DOGMA de fé a sempre
Virgem Maria.
Talvez você julgue a atitude
do Papa extremista, mas e a posição evangélica? Será que um evangélico pode
dizer, sem represálias, que acredita que Maria manteve-se Virgem? Para os
reformados este problema não existia. Lutero acreditava que Maria foi sempre
Virgem, e mesmo Calvino afirma isso em suas Institutas. No entanto, eles diziam
que cada um deveria ter sua própria posição, e respeitar a posição dos demais.
Ora, qual o motivo de tal liberdade? A resposta é simples: a Bíblia não me
obriga a crer em nenhuma das duas coisas, logo, sou livre para julgar e
escolher.
Lene;
pense em como a Igreja evangélica brasileira seria diferente se todos julgassem
as coisas por este princípio! Nos 39 Artigos da Religião, que nós anglicanos
temos como confissão e fé, é dito: “A Escritura Sagrada contém todas as coisas necessárias para a
salvação; de modo que tudo o que nela não se lê, nem por ela se pode provar,
não deve ser exigido de pessoa alguma seja crido como artigo de Fé ou julgado
como requerido ou necessário para a salvação”. Que tal? Que
Igreja você conhece que procura vier este princípio? Este é o princípio a
respeito do qual você interpelou-me, somente as Escrituras são nossa regra de
fé e prática. Os homens erram. Nossas tradições são falhas. A Escritura é
divina, perfeita, inerrante, infalível.
O primeiro fruto deste
princípio é que nosso Cristianismo seria realmente a religião da liberdade, e
não os grilhões da escravidão que está sobre tantos. Não liberdade para pecar,
pois o Cristo deve obediência aos Mandamentos do Cristo. Falo de ser livre para
nos submetermos a regras e mandamentos humanos. Eu já vi cristãos brigarem pela
cor de uma gravata, e alguns serem disciplinados por causa de uma partida de
futebol!
Outro resultado é que
nossas lideranças teriam reverencia pelas Escrituras. Nossos púlpitos estão
abarrotados de heresias, e poucos conseguem perceber o problema. Qual o motivo?
É triste, mas só posso pensar que somos semianalfabetos bíblicos. É certo que
decoramos alguns versículos chave das Escrituras, como o Salmo 23 e João 3.15,
mas isso não nos torna crentes bíblicos! Nossos pastores pensariam duas vezes
antes de falarem em nome de Deus, caso tivessem certeza de que somos um povo
que respeita apenas, exclusivamente, a autoridade das Escrituras.
Infelizmente, os
evangélicos se tornaram, nos dias de hoje, meros seguidores de homens e suas tradições
umbilicais. A Igreja evangélica de hoje não está em condição melhor que a
Igreja de Roma antes da Reforma. Precisamos, tanto quanto naqueles dias, de
pessoas que aceitem viver apenas sob o julgo da Escritura. Em nossa próxima
carta, falaremos sobre o principio conhecido como Sola Fide.
Até lá, querendo Deus!
*Lene; o nome é fictício, a fim de não expor sem
permissão a identidade da minha amiga, mas a história por trás desta série é
real.
Rev. Sidney Durão
ResponderExcluirMuito bom texto. Triste foi conhecer dois Presbiterianos que não conheciam os cinco solas da reforma. Detalhe: um diacono e um seminarista que confundiu os cinco pontos do calvinismo com os cinco solas da reforma. Foi reprovado no exame do presbitério, claro. Assustador!