Condenou o mundo!
Por Marcelo Lemos
Gosto muito da literatura Patrística, em cujas páginas encontro valiosos tesouros da história e da fé cristã. Entre os chamados “Pais da Igreja” encontro teólogos e pregadores de primeira grandeza, apologistas ousados e destemidos, além de uma multidão gloriosa de mártires. Dentre os meus preferidos figura Atanásio. Já contei um pouco se sua saga em outro artigo. Atanásio lutou durante muitos anos contra a heresia Ariana, que dentre outras coisas, negava a Divindade do Cristo. Uma doutrina semelhante à sustentada hoje pelas Testemunhas de Jeová. Sua garra e perseverança na defesa da sã doutrina lhe rendeu, ainda em vida, o título de “Coluna da Igreja”, aclamação feita por Gregorio Nazianzeno, bispo de Constantinopla (‘Discurso’ 21,16).
A vida de Atanásio foi uma guerra incansável e perseverante contra a Heresia, desde sua juventude. Um exemplo a ser seguido hoje. Vivemos tempos onde à defesa da fé é vista com desconfiança, ou até mesmo com desprezo. Hoje se valoriza mais os sentimentos que a Verdade. Nossos jovens abrem mão do censo critico, da análise, do estudo e dos exercícios intelectuais. Estamos vivendo um cristianismo pretensamente ‘místico’, destituído de conhecimento. Pior, caminhamos para um falso cristianismo, muito pior que aquele combatido nos dias da Reforma.
“Os cristãos devem afirmar que, visto que estudar teologia é conhecer a Deus, e esse é o maior propósito do homem, a teologia, portanto, possuiu um valor intrínseco. Jeremias 9.23-24 diz: Assim diz o SENHOR: Não se glorie o sábio em sua sabedoria nem o forte em sua força nem o rico em sua riqueza, mas quem se gloriar, glorie-se nisto: em compreender-me e conhecer-me, pois eu sou o SENHOR” (1) (CHEUNG, Vincent; Teologia Sistemática; Editora Monergismo).
Ainda moço, acompanhando seu Bispo, Alexandro (de que era secretário na metrópole egípcia), Atanásio participou do memorável Concílio de Nicéia; concílio ecumênico convocado pelo Imperador Constantino com vistas a manter a unidade da Igreja, gravemente ameaçada pelas teorias de Ario, na época presbítero de Alexandria. Daquelas reuniões e debates nasceria o Credo de Nicéia (2), documento de grande valor teológico para as várias tradições cristãs ao longo da História. Os evangélicos mais tradicionais certamente o conhecem, e provavelmente até o usam em sua Liturgia (3), como fazemos os anglicanos em nossas Celebrações da Ceia do Senhor (4).
A crise ariana, contudo, não foi completamente sanada com a decisão do Concílio de Niceia. A guerra teológica durou décadas (5), e foi especialmente devido as jogadas políticas de Constantino, e depois, por seu filho, Constâncio II. Ambos, especialmente o segundo, estavam dispostos a tudo para manterem a unidade do Império – o que incluía tolerar a heresia de Ário. A batalha teológica durou várias décadas, e por cinco vezes, ao longo de 30 anos, Atanásio se viu obrigado a fugir, tendo vivo ao todo 17 anos de exílio. Uma vida dedicada à defesa da Fé Cristã.
Como se sabe a História da Igreja contém suas próprias lendas - nem mesmo a Tradição evangélica (protestante) escapa dessa sombra (6). Há quem diga que um pequeno episódio que narraremos daqui a pouco nunca teria acontecido. Mas, mesmo que não seja um fato histórico, serve muito bem para representar o ânimo incansável de Atanásio na defesa da Religião Cristã.
Por aproximadamente meio século Atanásio foi o regente incansável do Cristianismo no Egito. Não foi uma tarefa fácil. O partido ariano, derrotado em Nicéia, lançou contra ele inúmeros ataques. Eusébio, por exemplo, questionou a validade de sua eleição e sagração episcopal, e exigiu que Ario, o herege, fosse readmitido na Igreja de Alexandria. Atanásio resistiu, negou-se a abrir mãos de suas convicções, mesmo quando o próprio Imperador Constantino ordenou a reintegração de Ário.
A luta continuaria. Eusébio alia-se aos malecianos, que passam a fazer falsas acusações contra o apologista. Mas até mesmo o Imperador foi forçado a admitir a inocência de Atanásio, o que não poria fim no levante de falsas acusações; dentre elas, que ele teria ordenado ao presbítero Macário que derrubasse o altar e quebrasse o cálice do sacerdote meleciano Isquias, e de ter assassinado o bispo egípcio Arsênio. Perante um sínodo em Tiro, em 335 d.C., foi deposto pelo Imperador, e exilado em Treves. Constantivo achava que apenas assim poderia restaurar a paz religiosa no Império.
O herege Ário, no entanto, não pode sentir o gosto da momentânea vitória; próximo de ser admitido na Igreja de Constantinopla, a morte trágica o surpreendeu. O fim trágico do herege parece ter causado alguma forte impressão em Constantino, que imediatamente mandou chamar o bispo exilado. Porém, nem mesmo estes fatos arrefeceriam a batalha.
Os eusebianos não haviam desistido de lutar. Nem Atanásio!
Um momento emblemático da ousadia ariana se deu em certa noite de 355 A.D., quando Eusébio surgiu em Roma, sequestrou o próprio ‘Papa’ e o conduziu a Milão, residência do Imperador. Novamente Atanásio estava no exílio, e o Bispo de Roma, Libério, foi seu incansável defensor. Libério não retrocedeu perante as investidas do próprio Imperador Constâncio. Estava disposta a defender Atanásio e a Ortodoxia da Religião Cristã. Por isso, assim como Atanásio, foi punido com o exílio, em Beréia. Os arianos aparentemente haviam vencido. Um Sínodo reunido em 357, Sínodo de Sirmio, declarou que o Filho era subordinado ao Pai.
Em meio a tantas lutas, e até perigo iminente de morte, o herói da Fé, Atanásio, teria ouvido de um conselheiro no campo de batalha: “Atanásio, desista de tudo isso! Olhe a sua volta, o mundo inteiro está contra você!”. Sem pensar duas vezes sua resposta tornou-se lendária na História da Igreja: “Então assim será: Athanasius contra mundum!”.
Não sabemos se tal diálogo realmente aconteceu; o que não importa, já que o ditado reflete com toda fidelidade a disposição inquebrável do nosso herói.
Atanásio, por seu amor a Verdade, e sua luta constante contra a Mentira, condenou o mundo, e venceu. A Verdade sempre triunfa. Quando morreu o Imperador Constãncio, em 361 A.D., todos os exilados foram chamados de volta, inclusive Atanásio. O herói perseguido celebrou no ano seguinte, 362, um Sínodo em Alexandria, e o arianismo foi novamente condenado pela Igreja. Ao contrário de seus opositores, Atanásio não era um homem rancoroso e, com seu coração de pastor, conseguiu muitos heréticos voltassem para a comunhão da Igreja.
Depois que finalmente os arianos foram derrotados, surgiria uma nova heresia, semelhante a primeira. Chamava-se Macedonianismo... Novamente nosso herói seria chamado ao campo de batalha. Mas esse é outro capítulo.
Desafiou o mundo, e o condenou. Assim fez também Noé, apontado entre os nomes da mais sacra lista de Heróis da Fé que conhecemos. “Pela fé, Noé, divinamente avisado das coisas que não se viam, temeu e, para salvação da sua família, preparou a Arca, pela qual condenou o mundo, e foi feito herdeiro da justiça que é segundo a fé” (Hebreus 11.7).
E nós? Que faremos diante da batalha?
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* O subsídio litúrgico que enriquece este artigo não seria possível sem o trabalho magistral do irmão Eduardo Chagas, editor do blog Liturgia Reformada; exceto pelo LOC Reformado, cujos créditos pertencem a Igreja Anglicana Reformada.
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