Convite a um mártir evangélico...
Por Marcelo Lemos
Você já ouviu falar em Thomas Cranmer? Talvez sua resposta
seja não, e seria perfeitamente compreensível. Porém, para nós, os anglicanos,
Cranmer é um dos grandes Heróis da Fé. Para o resto do cristianismo evangélico
também. Não foi um homem perfeito. Nem santo. Quando a coisa complicou chegou a
negar sua fé, arrependendo-se depois, terminando atado a uma fogueira (1). Martirizado por suas convicções
evangélicas, deixou como herança uma das maiores contribuições litúrgicas de
todos os tempos: O Livro de Oração Comum (2).
É certo que boa parte dos cristãos evangélicos a nossa volta
não gosta do termo “Liturgia”. Acreditam que esse palavrão diabólico engessa a
adoração e encaixota do Espírito Santo. Defendem que o mover do Espírito deva
ser “livre”. Contudo, o fato é que toda Igreja possui algum tipo de Liturgia.
Vou dar um exemplo fácil de entender. Provavelmente falo a uma maioria que não
possui uma Liturgia “formal”, como a nossa. Nem por isso falo a pessoas
destituídas de alguma liturgia. Querem ver? Pensem bem antes de responder: “Qual a posição do Púlpito em sua congregação?”.
A resposta da maioria, acredito, será “na frente da nave da Igreja, ao centro”.
Mas, saberiam o motivo?
A tradição de posicionar o Púlpito – plataforma de onde o
pregador expõe a Palavra de Deus – numa posição central nasceu com os
Puritanos. Para a tradição cristã mais antiga o lugar do Púlpito sempre havia
sido algum lugar nas laterais da Igreja, sendo o centro reservado para a Mesa
do Senhor, num convite para que todos participassem do Santo Banquete da
Eucaristia. Os Puritanos, no entanto, olhavam esse costume com certa
desconfiança. Temiam que houvesse excesso de ritualismo, e que o resultado
seria a superstição. Assim, tiraram a Mesa do Senhor do centro, substituindo-a
pelo Púlpito – simbolizando a centralidade da Palavra de Deus. Isso é Liturgia,
e é seguida por milhões de cristãos que não querem - ou não sabem - pensar
sobre o assunto.
Alheia a nossa possível aversão, a Liturgia impõe-se sobre
todos. Não existe culto sem Liturgia. Originalmente, em grego, o termo queria
dizer “serviço publico”. Já nos dias no Novo Testamento
a Igreja apossou-se deste termo, incluindo-o em sua tradição. O termo é usado
na Bíblia para descrever a celebração do culto divino, como em Atos 3:2 “E, servindo
(gre. liturgia) eles ao Senhor”, ou em S. Lucas 1:23 “Sucedeu que, terminados
os dias do seu serviço (gre. liturgia)”. Ao contrário do que muitos cristãos
modernos possam supor, o culto divino é descrito primordialmente como um “serviço”.
Isso pode parecer surpreendente para alguns, não? De fato, nos acostumamos a ir
a Igreja a procura de milagres, louvores performáticos e pregadores
exibicionistas; sentamos em nossos bancos para satisfazer a nós mesmos, aos
nossos próprios desejos e ambições. Fatigados por toda a Semana, a última
palavra que desejamos ter em nossa mente aos Domingos é “serviço”. Nossoa cultos,
talvez por isso, tenham se transformado em momentos de socialização, lazer e
entretenimento.
Como íamos dizendo, não existe culto sem Liturgia. Cabe
descobrirmos a quem estamos servindo em nossas reuniões publicas. Como
cristãos, nosso serviço deve ser dedicado a Cristo. Mas nem sempre é assim. Um
modo simples de tirarmos a prova é olhando para os “nomes” que temos dado aos
nossos “cultos”. Alguns exemplos: Fogueira Santa, Reunião dos Valentes, Culto
dos Empresários, Sete Voltas ao Redor de Jericó, Campanha da Multiplicação,
Culto das Sementes, e assim por diante. Ter ou não uma Liturgia é um falso
debate, um dilema inexistente. A questão verdadeira é: a quem estamos servindo,
afinal?
Thomas Cranmer tem muito a ensinar a Igreja evangélica do
nosso tempo. Mesmo que você nunca coloque os pés em uma Igreja anglicana, vale
a pena considerar alguns pontos.
Cranmer compreendeu
que o culto deveria edificar a Igreja. Em seu tempo, na Inglaterra, a Liturgia cristã
estava engessada. O padre só podia ministrar ‘voltado para Deus’ – que muitos
evangélicos entendem, erroneamente, como ‘de costas para o povo’. A celebração
era feita em Latim, e havia excesso de ritualismo. Tudo isso dificultava a
participação e o entendimento do povo comum. Cranmer, seguindo os passos dos
Reformadores do continente, modificou a liturgia a fim de corrigir tais
desvios. O culto passou a ser ministrado na língua do povo, os excessos ritualísticos
foram retirados, e Ministros e leigos participavam em conjunto do serviço
religioso.
No culto evangélico as pessoas leem a Bíblia, muitas vezes
longas porções inteiras. Elas oram conjuntamente, e aprendem as verdades da fé
cristã. A Liturgia tem a oportunidade de ser realmente catequética. “Que
fareis, pois, irmãos? Quando vos ajuntais, cada um de vós tem salmo, tem
doutrina, tem revelação, tem língua, tem interpretação. Faça-se tudo para
edificação” (I Coríntios 14:26). Se nada disso descreve os cultos que você
aprecia, algo triste está acontecendo.
Se hoje o alvo de muitos líderes religiosos é produzir
diversão, os ministros do Evangelho devem buscar a edificação da Igreja. E tal
tem sido a meta das liturgias evangélicas, não só entre os anglicanos, como
também entre luteranos, presbiterianos e outros. No já citado Ritos
Alternativos, autorizado para uso em nossas comunidades, pode ser encontrado o
seguinte esboço de culto:
Parte Um: Aproximando-nos
a Deus
1.
Cântico de abertura;
2.
Confissão de pecado;
3.
Cânticos de louvor;
Parte Dois: Ouvindo a
Palavra de Deus
1.
Leituras Bíblicas (Antigo e Novo Testamento,
Salmos)
2.
Cântico
3.
Sermão
4.
Credo (Aposstólico, Niceno)
Parte Três: Orando
pelo Mundo
1.
Orações (Coletas, livres)
2.
Cântico
Parte Quatro: Indo
servir a Deus no mundo
1.
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2.
Benção Final
Cranmer compreendeu
que a História da Igreja segue sendo escrita pelo Espírito Santo. Quando
tornamos nossas tradições sagradas, estagnamos. Creio que esse era um grande
mal no cristianismo anterior a Reforma. Mas, quando tentamos reinventar a roda,
recriar a fé cristã, tornamo-nos tolos. Creio ser este um dos piores males que
afeta a Igreja atual. Para muitos católicos romanos a tradição da Igreja é
infalível, inquestionável. Para a maioria dos Evangélicos, a tradição da Igreja
não passa de lixo, coisa descartável. Cranmer, e muitos outros reformadores,
tiveram uma compreensão bem melhor: continuidade e reforma!
Vamos retornar ao nosso exemplo sobre o posicionamento do
Púlpito. Os evangélicos modernos o colocaram no centro da nave, os anglicanos o
mantém na lateral da Igreja. Talvez muitos estranhem este fato, mas há um
propósito pedagógico. A Mesa do Senhor permanece no centro, enfatizando o
convite amoroso de Cristo para que todos os seus filhos participem do Pão e do
Vinho, nos quais Ele está presente. Conquanto o Púlpito na lateral da Igreja, com
sua posição mais elevada, enfatiza o poder da pregação, nos permite também lembrar
que ali está apenas um homem, e que a pregação, por mais importante, não é
igual a Palavra de Deus, e deve ser devidamente avaliada. A culpa não é necessariamente
do Púlpito transformado em centro das atenções, mas é fato que muitos de nossos
pregadores são vistos como infalíveis, cujas palavras e opiniões não podem ser
julgadas, e suas performances são mais atraentes que a Mesa onde espiritualmente
nos servimos do Corpo e do Sangue do Cristo.
Novamente, o debate não tem haver com “liturgia sim” e “liturgia
não”, mas sim, com como entendemos a História da Igreja. A questão é se nossa
Liturgia – e certamente todos nós temos uma – faz parte da “igreja de sempre”,
ou pretende reinventar como “andar pra frente”. Podemos rasgar a História da
igreja, bem como podemos coloca-la sobre um pedestal, fazendo-a infalível. Ou
podemos compreender que o Espírito se fez presente em todas as idades da
igreja, e que hoje podemos aprender com o passado, a fim de vivermos a fé de
modo melhor no presente, e construirmos o futuro.
Cranmer insistiu numa
pregação bíblica e sólida em todos os Domingos. Isso é engraçado, pois
quando muitos olham para um ministro anglicano, com sua camisa clerical, sua
alva e seu típete, a ideia que fazem é um cristão cheio de ritualismo e vazio
da Palavra. Um grande enganado. Para ter certeza de que haveria pregação
bíblica constante, Cranmer as famosas “Homilias”, que deveriam ser lidas ao
longo do ano litúrgico, sendo que os seis primeiros sermões das “Homilias”,
falavam da necessidade de uma compreensão bíblica a respeito da Obra de Cristo
e da Salvação Pela Fé!
Ray Sutton, professor de Bíblia e Teologia no Cranmer Theological House, em Huston,
Texas, num livro recentemente traduzido pela Latimer Press, tem algo mais a nos
dizer:
“Nosso livro de adoração, chamado
Livro de Oração Comum, 70% é Escritura, e 20% é parafraseado da Escritura.
Nossos cultos nada mais são que uma oração organizada, baseada nas Escrituras” (3).
De fato, procuramos nos centrar nas Escrituras. Daí nossos
cultos estarem impregnados por textos bíblicos. Daí termos, além do Livro de
Oração Comum, um recurso adicional chamado Lecionário. Varias Igrejas
evangélicas tem os seus próprios Lecionários, ou partilham algum em especial.
Manhã, Tarde e Noite na companhia do Santo Livro, auxiliados pelas Leituras
indicadas. Tudo isso visando fortalecer a fé, e vida devocional do povo de
Deus. Acredito que isso não pareça muito divertido...
Hoje Cranmer seria martirizado novamente, mas não nas mãos
de católicos romanos. Os próprios Evangélicos se encarregariam do trabalho. Talvez
não o amarassem a fogueiras, mas o acusariam de ser um crente frio, com defeito
de fabricação, e sem o Espírito Santo. Evidentemente não foi Cranmer quem
iniciou o movimento em prol de uma pregação mais Bíblica. Os reformadores já
estavam trabalhando no Continente, mas foi ele quem pagou o preço de liderar a
mesma reforma das Ilhas Britânicas. E o anglicanismo tem, ao longo dos séculos, espalhado a chama evangélica ao redor do mundo, tornando-se a terceira maior família de cristãos.
O culto não foi feito para mim, nem foi feito para você. O
culto cristão é um serviço que, publica e conjuntamente, ofertamos a Deus. Deus
é a razão e o objetivo da nossa adoração. Não a nossa vontade, mas a d’Ele.
Lembre-se disso da próxima vez que sentir a tentação de dizer “o culto não me
agradou”. Talvez possamos aprender um pouco mais sobre isso honrando a memória
do Thomas Cranmer, cristão, evangélico, mártir. Aceita o convite?
(1) No Brasil, um bom relato de sua vida pode ser
lida na obra O
Livros do Mártires, de John Foxe, Editora Mundo Cristão;
(2) Quem deseja conhecer um pouco mais a respeito da
Liturgia Reformada, da tradição anglicana e herdeira da teologia de Cranmer,
pode começar com a leitura de O Culto Comum,
publicação gratuita da Latimer Press. O livro reúne os Ritos Alternativos da
Igreja Anglicana Reformada do Brasil.
(3) Porque
Fazemos o Que Fazemos?, do Revm. Ray Sutton, gratuitamente disponibilizado
pela Latimer Press.
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