Porque Anglicanos?

 

Rev. Marcelo Lemos

É muito difícil explicar à maioria das pessoas as razões que me fizeram optar pela tradição anglicana. Grupos diferentes têm razões diferentes para não entenderem essa opção. Alguns católicos acham que é coisa de quem quer ser “padre” mas é rebelde ao Papa, enquanto outros, também católicos, acham que é usurpação descarada de elementos da tradição “romana”. Para boa parte dos evangélicos, incluindo alguns reformados, nós somos apenas... papistas.

Não é a primeira vez que escrevo sobre isso, mas com a proximidade de mais um Sínodo da Igreja Anglicana Reformada do Brasil, talvez valha a pena refletir mais uma vez o tema.

Vou começar com uma breve volta ao passado.

Quando deixei o Pentecostalismo estava a procura, claro, de uma igreja de linha reformada, ou histórica, no sentido mais conservador. Contudo me senti temeroso diante das opções mais óbvias. Nada contra a integridade das Igrejas com as quais passei a ter contato. A questão, de fato, é de outra natureza, e tem mais a ver comigo. Porque ainda que tenha saído do Pentecostalismo jamais pretendi jogar fora boa parte da bagagem que adquiri naquela tradição. Ainda hoje admito que existem vários valores na tradição pentecostal, especificamente na assembleiana, que eu muito valorizo. O leitor pode saber do que falo lendo um antigo texto aqui do blog, “Ser Assembleiano”. Como se pode ver, mudei de ideia quanto a ser assembleiano, mas não sobre os valores que eu considerava importantes.

E isso me faz voltar à pergunta deste artigo. Foi no anglicanismo, amigo leitor, que encontrei a possibilidade síntese entre essas diversas tensões. Achei o fim do dilema entre ser “evangélico” ou “anti-católico”, entre ser “reformado” ou “continuista”. De um lado não posso simplesmente me declarar “evangélico”, no sentido comum do termo, por ter uma eclesiologia alta demais para os padrões do “mundo gospel”, e ao mesmo tempo não posso jurar fidelidade ao Papa, afinal sou muito mais católico que boa parte dos fiéis do Vaticano, cujo sectarismo os torna justamente o contrário de “católicos”.

Optei pelo anglicanismo, primeiramente, porque ele me lembra a simplicidade do Evangelho de Cristo. Ser anglicano é, antes de qualquer outra coisa, não ter pretensões exageradas. Nossa confissão de fé, os “39 Artigos da Religião”, mostra-nos o coração da fé cristã, sem ter como alvo detalhar e explicar todos os seus mistérios e possibilidades. Basta-nos Cristo. Basta-nos a salvação pela fé. Essa valorização das doutrinas fundamentais é que possibilita haver dentro do anglicanismo tanta variedade de pensamento – ainda que o liberalismo tenha deturpado isso, o que lamentamos.

Que tipo de calvinista eu preciso ser para chamar-me anglicano? O Artigo XVII nos ensina que A predestinação para a vida é o eterno propósito de Deus, pelo qual (antes de lançados os fundamentos do mundo) tem constantemente decretado por seu conselho, a nós oculto, livrar da maldição e condenação os que elegeu em Cristo dentre o gênero humano, e conduzi-los por Cristo à salvação eterna, como vasos feitos para a honra”. Nenhuma especulação filosófica-metafísica, nenhum debate em linguagem sofisticada, sequer uma exigência sobre quantos nós a corrente deva composta, mas simplesmente a fé inabalável nos Decretos do Senhor.

Para muitos isso não é suficiente, porque deixa algumas áreas cinzentas pelo caminho. Para nós, anglicanos, as áreas cinzentas são dessa cor justamente por não serem fundamentais, e portanto, nos dão a oportunidade de exercer a caridade e a tolerância cristãs. Outro exemplo disso pode ser visto no Catecismo do Século 21, aprovado pela Igreja Anglicana Reformada do Brasil, em seu Sínodo 2012. Ao falar sobre a forma de batismo, o Catecismo Século 21 afirma tanto a imersão quanto a aspersão podem ser praticadas, de acordo com a consciência de cada cristão.

Essa peculiaridade anglicana fica evidente já o início de nossa Confissão de Fé, que no Artigo VI, a respeito das Escrituras, afirma:

A Escritura Sagrada contém todas as coisas necessárias para a salvação; de modo que tudo o que nela não se lê, nem por ela se pode provar, não deve ser exigido de pessoa alguma seja crido como artigo de Fé ou julgado como requerido ou necessário para a salvação”.

Pense no que isso significa! Um anglicano tem pavor de regras criadas por homens, e não por Deus, quando são colocadas como “necessárias” para Salvação! O que a Bíblia não prova claramente ser pecado, ou aquilo que nela não é claramente exigido, não cabe a Igreja fazê-lo no lugar de Deus. Semelhantemente, não temos problemas em lidar com aquilo que não é ordenado, mas que serve para o bem da Igreja, como a celebração do Natal, a Páscoa Cristã, ou o calendário Litúrgico. Ainda que não sejam coisas ordenadas nas Escrituras, elas são dignas e condizentes com a Lei de Deus, e podem ser praticadas dentro dessa mesma liberdade cristã.

Optei pelo anglicanismo porque seus formulários doutrinários se apegam, irremediavelmente, a tradição teológica da Reforma. Essa afirmação pode parecer contraditória se contrastada com parágrafo anterior, mas não. E aqui temos o problema dos liberais dentro do anglicanismo: eles canonizam a diversidade em detrimento da teologia cristã. Porque só podemos, de modo coerente, afirmar que existem doutrinas secundárias, e conviver verdadeiramente com a diversidade, se também afirmamos que, no fundamento, existem doutrinas que são indispensáveis.

Deus, tanto em nossa Confissão quanto em nossa Liturgia (Livro de Oração Comum), é descrito em toda sua grandeza, e a salvação em toda sua gratuidade, mantendo claramente delineados os princípios de fé advogados pelos Reformadores. Isso tem muito a nos dizer atualmente, uma vez que o anglicanismo nasceu num ambiente onde várias opções teológicas disputavam sua atenção, mas ele escolheu o caminho da Reforma. Nem tudo são flores, e uma grande crise se instalou no coração do Anglicanismo mundial, sendo boa parte do debate justamente a tentativa de responder se nossa tradição é essencialmente reformada, ou o foi por acidente. Liberais e anglo-católicos pretendem reescrever a história, nós escolhemos respeitar os seus marcos.

Optei pelo anglicanismo ainda devido seu alto conceito a respeito da Igreja, e do Pacto. Nós anglicanos, somos Pactuais. Não temos a Igreja como um simples clube de recreação e boas intenções, nem como um lugar reservado onde buscamos o favor divino, ou um arranjo de cristãos com interesses e gostos em comum. Pode ter algo dessas coisas, mas não é nada disso que define o que é a Igreja. A Igreja, como maravilhosamente definida por João Calvino, é o lugar:

“Em cujo seio Deus quer que seus filhos se agreguem, não apenas para que sejam nutridos de seu labor e ministério, por tanto tempo quanto são infantes e crianças, mas também de seu cuidado materno sejam guiados até que amadureçam e, finalmente, cheguem à meta da fé. 'Portanto, o que Deus ajuntou, não o separe o homem' [Mateus 19.6; Marcos 10.9], de sorte que àqueles de quem ele é o Pai, a Igreja também é mãe, não apenas sob a lei, mas ainda após a vinda de Cristo, conforme o testemunho de Paulo, que ensina sermos nós filhos da nova e celestial Jerusalém [Galátas 4.26)” - Institutas da Religião.

Um dos males que afligem o 'evangelicalismo' brasileiro é sua eclesiologia pobre. Não valorizamos a Igreja. Não respeitamos a autoridade eclesiástica. E, de fato, temos medo de tudo isso, como se fossem coisas com cheiro de Papado. Ironicamente, os mesmos que desprezam – se não com palavras, com atos – a Igreja, costumam ser os mesmos que idolatram líderes cristãos megalomaníacos. Nós, anglicanos, mantemos a fé do Credo Apostólico: “Creio na Santa Igreja...”.

Para um maior esclarecimento sobre a relação entre Igreja e o Pacto leia o artigo “Visão Federal – o que tem de bom?, que publicamos há algumas semanas aqui no blog.

Optei pelo anglicanismo, finalmente, devido o fato de que ela é uma Igreja fortemente centralizada na Pessoa e na Obra de Cristo. Não importa sob qual ângulo você analisa o anglicanismo, o seu coração é Cristo. Isso por ser visto, por exemplo, na própria confissão de fé que fazemos na Doutrina da Eleição. Já afirmamos que os “39 Artigos” não se detêm na tentativa de desvendar mistérios, mas tem algo mais que isso. Enquanto boa parte das Confissões Reformadas tratam a Eleição do ponto de vista da Ira de Deus, o anglicanismo se aproxima da Eleição a partir do amor de Deus. Não que a Ira de Deus seja irreal, ou de segunda importância, mas a ênfase dos “39 Artigos” é o amor divino demonstrado na Eleição. Por isso, os anglicanos abordam esse tema como “predestinação para a vida”.

A predestinação para a vida é o eterno decreto de Deus, pelo qual […] tem constantemente decretado por seu conselho, a nós oculto, livrar da maldição e condenação os que elegeu em Cristo dentre o gênero humano... nossa Eleição em Cristo, é cheia de um doce, suave, e inexplicável conforto para as pessoas devotas, e os que sentem em si mesmos a operação do Espírito Santo”.

A Ira de Deus é real. Isso está fora de questão. E todos os cristãos, especialmente os reformados, reconhecem o amor de Deus na Eleição. Também não é este o ponto. Do mesmo modo é evidente que se Deus elegeu alguém para a vida, mas não a outro, logo, Ele decretou a condenação do segundo, deixando-o a sós. No entanto, estamos falando de ênfase aqui: a eleição é para a vida! A ênfase anglicana é o Amor, não a Ira. Neste sentido, parece-me razoável sugerir que a confissão de fé do anglicanismo é, essencialmente e intencionalmente, infralapsariana.

A simplicidade e brevidade de nossa confissão de fé na Eleição é tamanha, que o teólogo anglicano Laurence Wells, sugere que nossa Confissão e Fé poderia ser aceita até por um arminiano ou amyraldiano, mas reconhece que, estritamente tomada, a posição aqui representada é a infralapsariana, ou seja, uma teologia calvinista. O próprio Wells confessa o mais preciso sentido dos “39 Artigos da Religião”. Para mim Wells exagera um pouco, pois o arminiano não pode simplesmente assinar embaixo do que confessamos, sem fazer uma ou duas ressalvas. E o próprio Wells confessa qual é, para ele mesmo, o mais estrito sentido da fé anglicana na Predestinação.

“Enquanto a ênfase arminiana na livre vontade é muito lisonjeira para meu orgulhoso ego, tenho consciência de que minha vontade me trouxe mais mal do que bem, em pecado, egoísmo e sofrimento. Quando se trata do meu próprio destino eterno, sinto-me mais seguro se a decisão é de Deus e não minha”.

Seja como for, esse é um testemunho a respeito da ênfase anglicana na Graça Salvadora, cuja fonte é Cristo. Para alguns Reformados e Agostinianos, parece que a Eleição é algo que Deus fez sem sentimento, simplesmente para demonstrar seu poder. Sim, foi para demonstrar seu poder também, mas Ele foi motivo por amor. A Eleição, sem dúvida alguma, foi movida por amor, um amor demonstrado pelo mundo inteiro, e feito Salvífico para os Eleitos.

Tal ênfase na Graça também está presente em tudo que a Igreja Anglicana faz, incluindo sua Liturgia.Você já participou de algum culto nosso? Quanto estiver em nosso meio repare no que estamos dizendo em nosso culto! Do início ao fim anunciamos uma única mensagem: Cristo! Até mesmo nosso calendário litúrgico conta-nos a história d'Aquele que é tudo para nós: Cristo!

O tema do Sínodo da IARB este ano será “Revitalizando a Força da Igreja”. Esse tema nasce de uma consciência a respeito das lutas que temos enfrentado para plantar esse projeto missionário no Brasil, e reflete nossas limitações e erros no processo. Mas vale a pena? Essa é uma questão que cada um de nós precisa responder, sejamos anglicanos ou não. Para valer a pena é necessário que em nosso coração exista a convicção de que, onde estamos, é possível encontrar a expressão mais exata do modelo de Igreja que Cristo, Senhor Nosso, deseja no mundo. E é exatamente por isso que sou anglicano, com a Graça de Deus. Amém.

8 comentários :

  1. Já sou Anglicano de coração, á espera de uma congregação mais perto de casa rs. Um abraço rev. Marcelo.

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  2. Já sou um Anglicano de coração, á espera de uma congregação mais perto de casa rs. Um grande abraço rev. Marcelo!

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  3. Obrigado pelo texto. Muito esclarecedor. Que Deus continue abençoando seu ministério.

    Marco Carvalho - www.cafeegraca.blogspot.com

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