Romanos: Prefácio de Lutero

PREFÁCIO À EPÍSTOLA DE
SÃO PAULO AOS ROMANOS

"Vorrede auf die Epistel Sankt Pauli an die Römer", 1522

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Martinho Lutero



De março a setembro de 1522, Lutero revisou a tradução do Novo Testamento com o auxílio de Filipe Melanchton. Quando a impressão estava chegando ao final, inseriu no espaço reservado o presente prefácio. Lutero estava preparado para escrevê-lo. De 1515 a 1516 tinha lecionado a Epístola aos Romanos. Em dezembro de 1521, tinha saudado a publicação dos Loci Communes de Melanchton, uma exposição de fé cristã à base de conceitos fundamentais da mesma epístola. Em 1522 tinha publicado, sem autorização, as Anotações de Melanchton às epístolas aos Romanos e Coríntios. Cerca de dez meses de trabalho na tradução do Novo Testamento o tinham confrontado, mais uma vez, com o evangelho anunciado por Paulo. Como se pode observar, esse prefácio constitui-se um resumo da própria teologia de Lutero. Convinha pois divulgá-lo aos letrados, além das fronteiras alemãs. Justo Jonas, colega de Lutero na universidade, o traduziu ao latim e o publicou em Wittemberg no ano de 1524. No mesmo ano apareceu uma edição em Estrasburgo, junto com as Anotações de Melanchton. Este prefácio foi lido numa reunião de irmãos morávios em Londres, em 24 de maio de 1728, e incendiou em John Wesley a fé que o transformou em vigoroso pregador de evangelho.

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Esta epístola é, sem dúvida, o escrito mais importante do Novo Testamento e o mais puro evangelho, digno e merecedor de que o cristão não só o conheça de cor, palavra por palavra, mas também com ele se ocupe diariamente, na qualidade de pão diário para a alma; pois ele jamais poderá ser lido ou contemplado em demasia. E quanto mais se lida com ele, tanto mais agradável e gostoso fica. Por isso também quero contribuir com a minha parte e proporcionar uma introdução com este prefácio, na medida em que Deus mo concedeu, para que seja tanto melhor compreendido por todos. Pois ele até agora foi terrivelmente obscurecido com glosas e todo tipo de conversa fiada, isto que se trata de uma luz muito clara, plenamente apta a iluminar toda a Escritura.

Em primeiro lugar temos que ficar conhecendo a linguagem, e saber o que Paulo quer dizer com estas palavras: lei, pecado, graça, fé, justiça, carne, espírito e similares, caso contrário de nada adiantará a leitura. A palavrinha "lei" não a deve entender, neste caso, de maneira humana, como se fosse uma doutrina acerca das obras que devem ser feitas ou evitadas, como é o caso com as leis humanas, as quais são cumpridas por meio de obras, mesmo que o coração não esteja junto; o que Deus julga é o fundo do coração; por isso também sua lei reivindicava o fundo do coração e não se dá por satisfeita com obras; ao contrário, ele pune aquelas obras que não vêm do fundo do coração, por serem hipocrisia e mentira. Daí por que todas as pessoas são chamadas de mentirosas (SI 116), porque ninguém cumpre nem consegue cumprir a lei de Deus do fundo do coração; pois cada um encontrará dentro de si mesmo a indisposição para o bem e a disposição para o mal. E onde não houver livre disposição para o bem, o fundo do coração não estará com a lei de Deus, ali com certeza haverá pecado e merecida ira de Deus, ainda que por fora pareça haver muitas boas obras e vida honrada.

No segundo capítulo (Romanos 2.9ss.) Paulo conclui daí que todos os judeus são pecadores, e diz que somente os que cumprem a lei estão justificados perante Deus. Com isso quer dizer que ninguém cumpre a lei somente através de obras, e sim lhes diz o seguinte: Você ensina que não se deve cometer adultério, e adultera; e da mesma forma: nisto em que julga o outro está a condenar a você mesmo, porque você mesmo faz precisamente aquilo que condena. Quer dizer: Exteriormente você vive de maneira perfeita nas obras da lei e julga aqueles que não vivem desta maneira, e sabe ensinar a todo mundo. 0 argueiro você o vê no olho dos outros, mas não percebe a trave no seu próprio. Pois mesmo que exteriormente cumpra a lei através de obras, por medo de punição ou por amor à recompensa, tudo isso o faz sem livre disposição e amor à lei, apenas com indisposição e coação, e preferiria agir de outro modo, não fosse a lei. Daí resulta que, no fundo do coração, está em oposição à lei. Que é isso, que ensina aos outros a não roubar, se no coração você mesmo é ladrão e exteriormente também gostaria de sê-to, se ousasse, posto que também a má obra exterior não demora a manifestar-se nesses fingidos. Você ensina aos outros, não, porém, a si mesmo, também não sabe o que ensina, tampouco jamais entendeu bem a lei. Sim, além disso a lei aumenta o pecado, como ele diz no capítulo 5.20. Porque o ser humano somente se lhe opõe ainda mais, quanto mais se lhe exigir algo que não consegue cumprir.

Por essa razão diz ele no capítulo 7.14: "A lei é espiritual". Que significa isso? Se a lei fosse carnal, ela poderia ser satisfeita com obras. Sendo, porém, espiritual, ninguém a satisfaz, a não ser que venha do fundo do coração o que você faz. Mas ninguém proporciona semelhante coração, senão o Espírito de Deus, este é que iguala a pessoa à lei, de sorte a receber de coração a disposição para a lei, agora tudo fazendo não por temor ou obrigação, mas de coração livre, espontaneamente. É espiritual, portanto, essa lei, que quer ser amada e cumprida com esse coração espiritual e que exige semelhante espírito. Onde este não for de coração, ali permanecem pecado, indisposição, inimizade frente à lei que, afinal, é boa, justa e santa.

Acostume se, portanto, à expressão de que são duas coisas totalmente diferentes fazer as obras da lei e cumprir a lei. A obra da lei tudo que a pessoa faz com a lei e pode fazer corri ela, partindo de sua vontade livre e de suas próprias forças. Como, porém, sob e ao lado de semelhantes obras, permanecem no coração indisposição e coação em relação à lei, todas essas obras são perdidas e inúteis. Isto é o que Paulo quer dizer no capítulo 3.20, ao dizer: "Ninguém será justificado diante de Deus por obras da lei." Daí pode ver agora que os disputadores acadêmicos e sofistas não passam de sedutores, ao ensinarem o preparo para a graça através de obras. Como se pode preparar para o bem através de obras quem não faz uma boa obra livre de indisposição e má vontade no coração? Como haverá de agradar a Deus a obra que provem de um coração indisposto e desobediente?

Entretanto, cumprir a lei significa. realizar sua obra com vontade e amor, levar uma vida reta e conforme a vontade de Deus livremente sem a coação da lei, como se não houvesse lei ou punição. Semelhante disposição partindo cio livre amor é o Espírito Santo quem a dá ao coração, como diz no capítulo 5.5. 0 Espírito, porém, não é dado se não em com e através da fé em Jesus Cristo, conforme ele o expressa rio prefácio. Assim a fé não vem senão exclusivamente pela palavra de Deus ou evangelho que prega a Cristo como Filho de Deus e pessoa humana, morto e ressurrecto em nosso favor, de acordo com o que ele diz nos capítulos 3.25; 4.25 e 10.6ss.

Daí sucede que somente a fé torna justificado e cumpre a lei; pois ela traz o Espírito proveniente do mérito de Cristo, e o Espírito cria um coração disposto e livre, como o exige a lei; assim, portanto, as boas obras se originam da própria fé. Isto é o que ele quer dizer no capítulo 3.21, depois de ter repudiado a obra da lei, de forma a parecer que ele quisesse anular a lei através da fé: Não (diz ele), nós afirmamos a lei através da fé, isto é, nós a cumprimos pela fé.

"Pecado" significa na Escritura não somente a obra exterior do corpo, e sim toda a atividade que se inquieta e movimenta ao se fazer a obra exterior, ou seja, o fundo do coração com todas as forças, de sorte que a palavrinha "fazer" significa: a pessoa cai e anda inteiramente no pecado. Pois de qualquer maneira não acontece nenhuma obra exterior do pecado sem que a pessoa participe plenamente, de corpo e alma, e a Escritura olha em especial para o coração, para a raiz e a fonte principal do pecado, que é a falta de fé no fundo do coração. Portanto, assim como só a fé justifica e traz o espírito e a disposição para boas obras exteriores, da mesma forma é apenas a falta de fé que peca e induz a carne a más obras exteriores, como aconteceu a Adão e Eva no paraíso (Gênesis 3.2s).

Por isso Cristo somente menciona a falta de fé como pecado, ao dizer em Jo 16.8s: "0 Espírito punirá o mundo por causa do pecado de não crerem em mim." Daí também é necessário, antes que aconteçam boas ou más obras, como frutos bons ou maus, que haja no coração fé ou falta de fé, como raiz, seiva e forca principal ele todo pecado; essa falia de fé por isso também é chamada na Escritura de cabeça da serpente te e do velho dragão, a qual -, descendência da mulher, Cristo, terá que esmagar, como foi prometido a Adão.

"Graça" e "dádiva" apresentam a seguinte diferença: "graça" significa propriamente a benevolência ou o favor de Deus que ele tem em si mesmo em relação a nos, o que o leva a derramar em nós a Cristo, o Espírito com suas dádivas, como se evidencia no capítulo 5.15, onde diz: "A graça de Deus, e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foi abundante sobre muitos." Pode acontecer que as dádivas e o Espírito aumentem diariamente em nós e ainda assim não sejam perfeitos, de sorte que ainda restem em nos maus desejos e pecado a se oporem ao Espírito, conforme capítulo 7.5ss e Gálatas 5.16ss, e a promessa de contenda entre a semente da mulher e a semente da serpente. Ainda assim a graça é tal que perante Deus somos considerados inteira e plenamente justificados; pois sua graça não se divide e não vem em parte, como acontece com as dádivas, aias nos acolhe totalmente na benevolência, por causa de Cristo, nosso intercessor e mediador, e em virtude de as dádivas estarem iniciadas em nós.

Portanto você entenderá também o sétimo capítulo, no qual Paulo se chama a si mesmo de pecador e riem por isso deixa de dizer no oitavo capítulo, que nada há de condenável naqueles que estão em Cristo, por causa das dádivas imperfeitas e do Espírito. Por causa da carne não-mortificada nós ainda somos pecadores, mas por crermos em Cristo e termos o princípio do Espírito, Deus nos é tão propício e misericordioso, que não considera nem julga semelhante pecado, e sim nos quer tratar segundo a fé em Cristo, até que seja morto o pecado.

Fé não é a ilusão e o sonho humano que muitos acham que é. E quando vêem que não acontece uma melhoria de vida nem boas obras e ainda assim muito ouvem e falam da fé, caem no erro de dizer que a fé não é suficiente, que seria preciso fazer obras, se é que se quer ficar justo e salvo. A conseqüência disso é que, ao ouvirem o evangelho, agem precipitadamente e, por esforço próprio, criam um pensamento no coração, que diz: "Eu creio". Isso eles então consideram uma fé como deve ser. Mas assim como isso não passa de inspiração e pensamento humano, que jamais atinge o fundo do coração, também nada ocasiona, tampouco se seque uma melhoria.

Fé verdadeira, entretanto, é uma obra divina em nós, que nos modifica e faz renascer de Deus (Jo 1.13), além de matar o velho Adão, transformando-nos em pessoas bem diferentes de coração, sentimento, mentalidade e todas as forças, trazendo consigo o Espírito Santo. Ah, há algo muito vivo, atuante, efetivo e poderoso na fé, a ponto de não ser possível que ela cesse de praticar o bem. Ela também não pergunta se há boas obras a fazer, e sim, antes que surja a pergunta, ela já as realizou e sempre está a realizar. Quem, porém, não realiza tais obras, é pessoa sem fé, que anda às apalpadelas à procura da fé e de boas obras e nem sabe o que é fé nem boas obras, e ainda fica falando muito e conversando fiado sobre as mesmas.

"Fé" é uma confiança muito viva, inabalável na graça de Deus, tão certa de si que ela não se importaria de morrer mil vezes. E semelhante confiança e reconhecimento de graça divina dá alegria, persistência e agrado ante Deus e todas as criaturas, o que é ocasionado pelo Espírito da fé. Por isso, sem coação, ela se dispõe voluntariamente a fazer o bem a todo mundo, a servir a todo mundo, sofrer tudo, por amor e em louvor a Deus que lhe demonstrou tamanha graça, de sorte que é impossível separar as obras da fé, tão impossível como separar a luz do fogo. Tome cautela, portanto, contra as suas próprias idéias falsas e contra conversadores inúteis, que querem ser sabidos ao julgar sobre a fé e as boas obras e, na verdade, são os maiores ignorantes. Peço a Deus que crie fé em você, senão há de ficar eternamente sem fé. Você, por sua parte, invente e faça o que quiser ou puder.

"Justiça", então, é essa fé, e significa justiça de Deus, ou que vale perante Deus, uma vez que ela é dádiva que Deus concede e que dá à pessoa a disposição de dar a cada um o que lhe é devido. Pois, através da fé, a pessoa se torna sem pecado e ganha vontade de cumprir os mandamentos de Deus, com o que ele dá gloria a Deus e lhe paga o que lhe é devido. E às outras pessoas ela serve de bom grado onde puder, e com isso também paga a cada um. Uma justiça desta espécie nem a natureza, nem a livre vontade e nossas forças conseguem produzir; pois da mesma forma como ninguém consegue dar a fé a si mesmo, também não se pode eliminar a falta de fé. Como se haveria de tirar o menor pecado que fosse? Por esta razão tudo é falso, é hipocrisia e pecado o que acontece fora da fé ou em falta de fé (Rm 14.23) por maior brilho que apresente.

"Carne" e "espírito" não se deve entender aqui como se "carne" fosse apenas aquilo que se refere à impudicícia, e "espírito", o que tange a interioridade do coração. Na realidade, Paulo chama de "carne", como também Cristo o faz em João 3.6, a tudo que é nascido da carne, a pessoa inteira, com corpo e alma, a razão e todos os sentidos, isto pelo motivo de que tudo nela se orienta segundo a carne. Cabe saber chamar de "carnal" também àquele, portanto, que, sem a posse da graça, muito inventa, ensina e conversa sobre altos assuntos espirituais, como o pode aprender com as "obras da carne" (Gálatas 5.19ss), onde Paulo também chama a heresia e o ódio de "obras da carne"; e, em Romanos 8.3 ele diz que através da carne a lei é enfraquecida. Aí não se refere à impudicícia, mas a todos os pecados, sobretudo, porém, à falta de fé, que é o mais espiritual dos vícios.

Por outro lado, Paulo chama também de espiritual àquele que está lidando com as obras mais exteriores possíveis, como por exemplo Cristo, ao lavar os pés dos discípulos, e Pedro, ao conduzir o barco e pescar. De sorte que toda "carne" é uma pessoa que interior e exteriormente vive e atua de forma a servir ao proveito da carne e à vida temporal. "Espírito", entretanto, seria aquele que interior e exteriormente vive e atua de forma a servir ao espírito e à vida futura. Sem tal compreensão dessas palavras, jamais haverá de entender esta epístola de Paulo, ou qualquer livro da Sagrada Escritura. Por isso cuide-se de todos os mestres que usam essas palavras de outra forma, seja lá quem for, mesmo que sejam Jerônimo, Agostinho, Ambrósio, Orígenes e seus semelhantes ou ainda superiores. Voltemo-nos agora à própria epístola.

A um pregador evangélico convém, pela revelação da lei e do pecado, primeiro repreender e caracterizar como pecado a tudo que não é vivido a partir do Espírito e da fé em Cristo (para que as pessoas cheguem ao reconhecimento de si mesmas e de sua situação lamentável, de sorte que se humilhem e procurem ajuda). Assim também o faz Paulo. Começa no primeiro capítulo por repreender os pecados grosseiros e a falta de fé, claros como a luz do dia, tais como eram e ainda são os pecados dos pagãos que vivem sem a graça de Deus, e diz que, através do evangelho, a ira de Deus se revela do céu sobre todos os homens por causa ele sua natureza ímpia e do seu vicio. Sabem e reconhecem diariamente que há um Deus; a natureza, porém, é, de si mesma, fora da graça, tão má, que não lhe agradece nem o honra, e sim ofusca a si mesma, caindo sem cessar em coisas cada vez piores, até produzir descaradamente, depois de idolatrias, finalmente também os vergonhosos pecados com todos os vícios, deixando ainda os outros impunes.

No segundo capítulo Paulo ainda estende essa repreensão também àqueles que exteriormente parecem retos, porém pecam às ocultas. Tal era o caso dos judeus e continua sendo o de todos os hipócritas vivem sem vontade e amor, e no coração têm inimizade a Deus. Mas nem por isso deixam de condenar, de bom grado, a outras pessoas, ao feitio de todos os que gostam de aparecer, que a si mesmos se consideram puros mesmo estando cheios de avareza, ódio, orgulho e torpeza (Mateus 23.21s). São os que desprezam a benignidade de Deus e por sua dureza vão acumulando a ira. De sorte que Paulo, um bom Intérprete da lei, não deixa ninguém sem pecado, e anuncia a ira de Deus a todos que querem levar urna vida correta, baseando-se na natureza ou na própria livre vontade, não os deixando ser melhores em nada do que os pecadores reconhecidos. Sim, diz que têm o coração endurecido e são impenitentes.

No terceiro faz de ambos um bolo só e diz que um é como o outro: em todos os casos pecadores perante Deus, só que os judeus tiveram a palavra. Apesar de muitos não terem crido nela, isso não é motivo para a fé e a verdade de Deus terem chegado a seu fim, sendo que aqui ele ainda insere o dito do Salmo 51.4, de que Deus permanece justo em suas palavras. Em seguida volta ao assunto e prova também, através da Escritura, que todos são pecadores e que ninguém é justificado pelas obras da lei, e sim a lei é dada somente para se reconhecer o pecado. Depois disso, põe-se a ensinar o caminho certo de como a pessoa se torna reta e salva, dizendo: Todos eles são pecadores e sem glória perante Deus. Mas têm que ser justificados sem mérito próprio através da fé em Cristo, que para nós o mereceu por seu sangue e se tornou para nós um propiciatório de Deus, que nos perdoa todo pecado anterior. isso o faz para provar que unicamente sua justiça, dada na fé, é que nos ajuda, justiça revelada então pelo evangelho e testemunhada anterior mente pela lei e pelos profetas, Assim a lei é, na realidade, instaurada pela fé, se bem que as obras da lei com isso sejam postas de lado com a sua glória

No quarto capítulo - uma vez que nos primeiros três revelados os pecados e foi ensinado o caminho da fé para a justiça - Paulo passa a responder a uma serie de objeções e contestações; ocupa-se, em primeiro lugar, com aquela geralmente feita por todos os que ouvem falar da fé, de como ela poderia justificar sem obras, dizendo: Não se devem então fazer boas obras? Por isso coloca diante de si mesmo a Abraão como exemplo, e diz: Que fez Abraão com suas obras? Foi tudo em vão? Foram sem proveito suas obras? E tira a conseqüência de que Abraão foi justificado sem quaisquer obras, exclusivamente pela fé, sim, que até antes da obra de circuncisão ele teria sido enaltecido pela Escritura como justificado, exclusivamente em virtude de sua fé, Gênesis 15.6. Se, porém, a obra esta que Deus lhe ordenou e que foi uma boa obra da obediência, assim com certeza nenhuma outra obra boa o fará. E da mesma forma como a circuncisão de Abraão foi um sinal exterior com que demonstrou sua justiça na fé, assim toda as boas obras são apenas sinais exteriores que resultam da fé e, como bons frutos, demonstram que interiormente a pessoa já está justificada perante Deus.

Com isso Paulo confirma então, como que com um vigoroso exemplo da Escritura, sua doutrina da fé já exposta antes em Romanos 3 (v.28), e ainda apresenta mais uma testemunha: Davi que, no Salmo 32.1ss, também diz que a pessoa é justificada sem obras, se bem que ela não fique sem obras, uma vez justificada. Em seguida coloca esse exemplo em relação a todas as demais obras da lei e conclui que os judeus não podem ser herdeiros de Abraão somente em virtude de serem do seu sangue, menos ainda por causa das obras da lei; na verdade eles têm que herdar a fé de Abraão, se é que querem ser bons herdeiros, uma vez que Abraão foi justificado pela fé e chamado de pai de todos os crentes já antes da lei, tanto de Moisés como da circuncisão. Além disso, a lei ainda provoca muito mais a ira do que a graça, uma vez que ninguém a cumpre com amor e vontade, de sorte que das obras da lei provém muito mais desgraça do que graça. Por isso somente a fé pode alcançar a graça prometida a Abraão; pois também esses exemplos são escritos para nosso bem, para que também nós venhamos a crer.

No quinto capítulo, Paulo fala dos frutos e das obras da fé, quais sejam: paz, alegria, amor a Deus e a todos, além de segurança, confiança, ânimo e esperança em tristeza e sofrimento. Pois, onde a fé for verdadeira, tudo isso resulta do bem superabundante que Deus nos demonstra em Cristo: de tê-lo feito morrer por nós antes mesmo de lho podermos pedir quando ainda éramos inimigos. Temos, portanto, que a fé justifica sem quaisquer obras e mesmo assim não sucede daí que não se deveria fazer boa obra, e sim que as obras justas não ficam ausentes; destas, porém os santos por obras nada sabem; inventam para si mesmos obras próprias, que não contém nem paz, nem alegria, nem segurança, nem amor, nem esperança, nem porfia, tampouco qualquer tipo de obra e fé cristã direita,

Em seguida faz uma digressão e conta de onde provêm as duas coisas: pecado e justiça, morte e vida, e contrapõe muito bem os dois: Adão e Cristo. Portanto, quero dizer: Cristo teve que vir como segundo Adão, que nos deu por herança sua justiça, através do nascimento espiritual na fé, da mesma forma como aquele Adão nos passou a herança do pecado através do velho nascimento carnal. Assim fica evidenciado e confirmado que, através de obras, ninguém pode ajudar si mesmo a sair dos pecados para a justiça, tampouco como pode evitar que seja nascido corporalmente Isto também é provado pelo seguinte fato: A lei divina por direito deveria ajudar, se é que ela poderia ajudar em alguma coisa em prol da justiça. Mas ela não só veio sem trazer ajuda, como até aumento o pecado, porque a natureza má tanto mais se torna inimiga sua e tanto mais prefere expiar seu desejo, quanto mais a lei a impede. Dessa forma a lei torna Cristo ainda mais necessário e tanto mais exige a graça que ajuda a natureza.

No sexto capítulo, o apóstolo trata da obra particular da fé: a contenda do Espírito com a carne em matar por completo os demais pecados e desejos que restam após a justificação, e nos ensina que, através da fé, não estamos libertados de pecados de forma tal que pudéssemos ficar ociosos, preguiçosos e seguros, como se não mais houvesse pecado. Há pecado, mas ele não é imputado para a condenação, por causa da fé que com ele luta. Por isso temos o bastante para lidar conosco mesmos a vida inteira: Domar o corpo, matar seus desejos e obrigar seus membros a obedecerem ao Espírito e não aos desejos. Para que sejamos iguais à morte e ressurreição de Cristo e possamos levar a cabo aquilo que foi começado em nosso batismo, o qual também significa a morte dos pecados e uma nova vida da graça, até que, totalmente purificados de pecados ressurjamos também corporalmente com Cristo e vivamos eternamente.

E isso o podemos fazer, diz ele, porque nos encontramos na graça e não na lei, o que ele mesmo interpreta no seguinte sentido: "Ser sem lei" não é o mesmo que não ter lei alguma e que se possa fazer o que apraz a cada um, e sim "estar sob a lei" é quando, sem a graça, lidamos com as obras da lei. Então, com certeza, o pecado impera através da lei, uma vez que ninguém por natureza é afeito à lei, e isto é um grande pecado. A graça, porém, nos torna a lei agradável de sorte que não há mais pecado e a lei não está contra nós, mas em harmonia conosco.

E esta é a liberdade correta do pecado e da lei: até o final deste capítulo Paulo expõe que é uma liberdade de fazer apenas o bem com vontade e de viver corretamente sem a coação da lei. Por isso tal liberdade é uma liberdade espiritual, que não anula a lei, e sim oferece aquilo que é exigido pela lei: vontade e amor, com o que a lei é aplacada e não mais fica a incitar e exigir. É corno se você estivesse em d dívida para com um credor e não pudesse pagar. Há duas maneiras pelas quais você se poderia livrar: Uma, que ele nada lhe cobrasse e rasgasse sua nota promissória; a outra, que um homem bom pagasse por você, e lho desse o suficiente para pagar a promissória. Desta maneira, Cristo nos livrou da lei, razão por que não se trata de uma liberdade carnal e selvagem, que nada precisa fazer, mas sim de uma liberdade que faz muito e toda sorte de coisas e está livre apenas da exigência e dívida da lei.

No sétimo capítulo, Paulo exemplifica sua afirmação no matrimônio: Quando morre o marido, a mulher está desimpedida e um está separado e livre do outro. Não que a mulher não pudesse ou devesse tomar outro homem. Ela está apta a tomar outros, o que ela anteriormente não podia, por não estar livre daquele. Assim também nossa consciência sob a lei está vinculada ao velho homem pecaminoso; ao ser este morto pelo Espírito, a consciência está livre, e um desobrigado do outro; não que a consciência nada devesse fazer; mas sim para que agora possa ater-se tanto mais a Cristo, o outro homem, e produzir frutos para a vida.

Em seguida apresenta ainda a peculariedade dos pecados e das leis, de como pela lei o pecado fica ainda mais ativo e violento. Pois o velho homem se torna tanto mais inimigo da lei por não poder pagar o que a lei exige. Porque sua natureza é pecado, e ela de si mesma não pode fazer outra coisa, motivo por que a lei é sua morte e seu martírio. Não que a lei seja maligna, mas a natureza má é que não pode suportar o bem que a lei dela exige, assim como um doente não agüenta que se exija que corra e salte, ou pratique outros atos próprios de uma pessoa sã.

Por isso Paulo conclui: Onde a lei for adequadamente reconhecida e entendida da melhor maneira possível, ela não faz mais do que nos lembrar de nosso pecado e nos matar através do mesmo, tornando-nos culpados da ira eterna (tudo isso se percebe e experimenta muito bem na consciência, quando esta é bem atingida pela lei). De sorte que é necessário algo diferente e superior à lei para tornar a pessoa justa e salva. Aqueles, porém, que não reconhecem adequadamente a lei, são cegos, comportam-se com arrogância, acreditando poder-lhe fazer jus com obras. Pois não sabem o quanto a lei exige: um coração livre, disposto e animado; por essa razão não encaram a Moisés de frente. Para eles o véu está posto na frente, encobrindo-o (2 Coríntios 3.13ss).

Em seguida mostra como o Espírito e carne lutam um contra o outro numa mesma pessoa; apresenta a si mesmo como exemplo para que aprendamos a reconhecer bem a obra de matar o pecado em nós mesmos. Mas a ambos ele chama de lei, tanto o Espírito como a carne, e isso pela seguinte razão: Assim como a lei divina tem a característica de impelir e exigir, assim também a carne impele, exige e se agita com violência contra o Espírito e quer impor o seu desejo. Por outro lado, o Espírito investe contra a carne e procura impor sua vontade. Esta luta perdura dentro de nós enquanto vivemos, num mais, noutro menos, dependendo de ficar com a supremacia o Espírito ou a carne. E mesmo assim, a pessoa inteira é ela mesma ambas as coisas, Espírito e carne, lutando, portanto, consigo mesma, até que fique inteiramente espiritual.

No oitavo capítulo, Paulo consola esses lutadores, para que não condenem sua carne. Indica qual a natureza da carne e do Espírito e como o Espírito provém de Cristo, que nos deu seu Santo Espírito, que nos faz espirituais, amortece a carne e nos assegura de que ainda assim somos filhos de Deus, por mais violento que o pecado se agite dentro de nós, contanto que sigamos o Espírito e resistamos ao pecado, para o matar. Como, porém, nada é tão bom, para insensibilizar a carne, como cruz e sofrimento, ele nos consola nos sofrimentos através do auxílio do Espírito, do amor e de todas as criaturas. Tanto o Espírito suspira em nós como a criatura conosco anseia para que nos livremos da carne e dos pecados. Vemos, portanto, que esses três capítulos têm por alvo esta única obra da fé: matar o velho Adão e subjugar a carne.

No nono, décimo e décimo primeiro capítulos, ele ensina a eterna predestinação de Deus. Desse conceito provém originalmente a distinção entre quem há de crer e quem não, quem se pode livrar de pecados ou não. Com ele está de todo fora do nosso alcance e exclusividade nas mãos de Deus que nos tornemos retos. E isto é de suma necessidade. Pois somos tão fracos e inseguros que, se dependesse de nós, naturalmente nem uma pessoa sequer se salvaria, e o diabo com certeza a todas sobrepujaria. Mas, como para Deus é certo que não falhará aquilo que ele predetermina, tampouco alguém o pode impedir, ainda temos esperança contra o pecado.

Entretanto há que se pôr um limite aqui aos espíritos arrogantes e rebeldes que, primeiro, dirigem seu raciocínio para este ponto, começam por pesquisar o abismo da predeterminação divina e se preocupam em vão com a pergunta se estão predeterminados. Estes então têm que se humilhar a si mesmos de forma a desesperar ou a pôr tudo em jogo. Você, porém, siga a esta carta em sua seqüência, ocupe-se primeiro com Cristo e o evangelho. Nele reconhecerá seu pecado e a graça do evangelho. Em seguida combata o pecado, como o ensinaram aqui os capítulos 1 a 8. Depois, tendo chegado ao 8º capítulo, sob cruz e sofrimento, isso lhe ensinará a bem entender a predeterminação nos capítulos 9 a 11. E como ela é consoladora! Pois sem sofrimento, cruz e aflições de morte não se pode tratar da predeterminação, sem juízo e indignação oculta contra Deus. Por isso o velho Adão precisa estar morto antes de suportar essa coisa e tomar o vinho forte. Tome cuidado, por tanto, que não beba vinho enquanto ainda é lactente. Todo ensina mento tem sua medida, tempo e idade.

No capítulo doze, Paulo ensina o bom culto a Deus e faz de todos os cristãos sacerdotes que devem sacrificar: não dinheiro ou animais, como prescrito na lei, mas seus próprios corpos, pela mortificação dos desejos. Em seguida descreve a conduta exterior dos cristãos no regime espiritual: como devem ensinar, pregar, dirigir, servir, dar, sofrer, amar, viver e agir em relação a amigo, inimigo e todo mundo. Estas são as obras que um cristão faz; pois, como está dito, a fé não descansa.

No capítulo treze, ensina a honrar e obedecer ao regime secular instituído, mesmo que não consiga tornar as pessoas justas perante Deus, ao menos para conseguir que os retos tenham paz e proteção exterior, e os maus não possam praticar maldades livremente, sem medo e incômodo, na maior tranqüilidade. Finalmente ele a tudo resume no amor e o encerra no exemplo de Cristo: como ele agiu para conosco, assim também nós devemos agir e segui-lo.

No capítulo quatorze, ele ensina a conduzir na fé, com muito cuidado, as consciências fracas e a como poupá-las. Que não se use a liberdade dos cristãos em prejuízo mas para promoção dos fracos. Pois onde não se faz isso, surge discórdia e desprezo pelo evangelho, o que não deixa de ser um grande mal. De sorte que é melhor ceder um pouco aos de fé fraca, até que se tornem mais fortes, do que deixar desaparecer por completo a doutrina do evangelho. E semelhante obra é uma obra especial do amor, a qual também é necessária agora que se confundem, dura e descaradamente, sem qualquer necessidade, as consciências fracas, com comer carne e outras "liberdades", e isso antes de conhecerem por inteiro a verdade.

No capítulo quinze, o apóstolo faz de Cristo um modelo exemplar, para que toleremos também os outros fracos em conseqüência de pecados conhecidos ou de costumes impróprios, os quais não devem ser repudiados, mas suportados, até que também eles melhorem. Pois da mesma forma também Cristo agiu conosco e ainda age diariamente, suportando em nós muitos vícios e maus costumes ao lado de toda imperfeição e ajudando-nos sem cessar.

Em conclusão, o apóstolo roga pelos crentes em Roma, louva-os e os entrega aos cuidados de Deus, apresenta seu ministério e pregação e solicita com muita singeleza que ajudem aos pobres de Jerusalém, e é com puro amor que ele fala e trata as pessoas. Encontramos, portanto, nesta epístola em superabundância aquilo que um cristão deve saber: o que é lei, evangelho, pecado, castigo, graça, fé, justiça, Cristo, Deus, boas obras, amor, esperança, cruz, e como devemos proceder com todo mundo, seja justo ou pecador, forte ou fraco, amigo ou inimigo, e em relação a nós mesmos, Além disso, tudo está fundamentado de forma excelente com passagens da Escritura, com exemplos dele mesmo e dos profetas, de modo a não ficar nada a desejar. Por isso também parece que nesta epístola Paulo quis fazer um resumo de toda a doutrina cristã e evangélica, bem como fornecer um acesso a todo o Antigo Testamento. Pois, sem dúvida alguma, quem tiver esta carta no coração tem consigo a luz e a força do Antigo Testamento. Por isso familiarize-se cada cristão com ela e com ela se ocupe constantemente. Deus conceda sua graça para este fim. Amém

O último capítulo se limita a transmitir saudações. Ali, porém, entremeia uma nobre advertência contra doutrinadores humanos que, além da doutrina evangélica, introduzem outras doutrinas e provocam escândalo. É como se ele tivesse previsto com toda precisão e certeza que de Roma e através dos romanos haveriam de vir as enganosas e irritantes determinações papais e toda essa bicharia e infestação de leis e mandamentos humanos que agora inundam o mundo inteiro e anularam esta epístola e toda a Sagrada Escritura junto com espírito de fé, ponto de nada mais restar senão o ídolo do ventre. a cujos servidores Paulo repreende aqui (Romanos 16.17s). Deus nos livre deles, Amém.

Martinho Lutero. Pelo Evangelho de Cristo: Obras selecionadas de momentos decisivos da Reforma. Trad. Walter O. Schlupp. Porto Alegre: Concórdia & São Leopoldo: Sinodal, 1984. pp. 179-192.

Fonte: portal Textos da Reforma.

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