Ser anglicano em tempo de confusão



Esta semana tive o prazer de receber em casa meu querido amigo Josep Rossello, bispo moderador da Igreja Anglicana Reformada do Brasil. Aqui, celebrou conosco a Eucaristia, e compartilhou com a gente sua visão sobre anglicanismo e evangelização, dentre outros assuntos relevantes. Na quinta-feria, nos reunimos com outro amigo, Armando Marcos, do projeto Spurgeon, para mais um momento de confraternização. Armando, que é presbiteriano, tem sido uma benção para nossos ministérios.



Marcelo, Meire, Rossello, Armando, na Avenida Paulista


Tema dominante nas conversas, a questão: que, afinal, significa ser anglicano? Temos visto muita confusão a este respeito. Muitas pessoas parecem procurar o anglicanismo com uma visão "romântica" sobre o que ele é, e não pelos fatos. O bispo Josep Rossello tem procurado tratar este tema de modo sério e abrangente, e quero compartilhar com vocês um excelente artigo publicado em seu blog recentemente, o Café Com o Bispo.



Ser anglicano em tempo de confusão é uma leitura fundamental para quem já está, pretende estar conosco, ou simplesmente deseja nos conhecer melhor.O artigo é longo, e muito valioso.


Hoje, gostaria de refletir sobre o que faz uma igreja ser anglicana. Evidentemente, se considera uma área controvertida, contudo esclarecerei este ponto básico.

A Igreja Anglicana surge a partir do século 16. Até aquele momento, não se pode falar da Igreja Anglicana, mas da Igreja Celta em um primeiro momento e, depois, da Igreja Inglesa, leia-se a Igreja Católica Romana na Inglaterra.

Uma das questões interessantes é que se lemos diversas obras clássicas sobre Anglicanismo, não encontraremos quase nenhuma referência sobre a “Sê de Canterbury.” Por exemplo, não lembro ter visto nem uma só vez a palavra “Canterbury” na obra prima do bispo John Jewell, “Apologia da Igreja de Inglaterra.”

Se lemos os teólogos e líderes da Reforma Inglesa (Thomas Cranmer, John Jewel, Richard Hooker, entre outros), os quais definiram o que significa ser Anglicano, o que encontramos não é uma ligação a Canterbury. Os Reformadores Ingleses tinham uma relação estreita e próxima, tanto com Martinho Lutero e seus discípulos como com João Calvino e os outros líderes de Genebra. Isto se observa claramente com o fato de que a Igreja de Inglaterra, em outras palavras os anglicanos, estiveram presentes no Sínodo de Dort e suas intervenções jogaram um papel destacado no mesmo. 

A Igreja de Inglaterra tinha certas características compartilhadas com as outras igrejas reformadas na Europa e, ao mesmo tempo, certas características próprias, as quais são hoje as enfatizadas sobre as primeiras.

As características compartilhadas com os outros Reformados:

1. A centralidade, suficiência, unidade, primazia e autoridade das Escrituras na vida da Igreja. Isto é evidente no desenvolvimento da própria igreja e na teologia da mesma.

2. A centralidade da pregação das Escrituras no culto da igreja. Não em vão, o culto principal foi o Culto Matutino ou Vespertino. Se desenvolveu a Escola Dominical. Inclusive, se escreveram as “homilias” para que fossem pregadas onde o ministro não tinha capacidade de pregar.

3. Uma soteriologia (salvação) claramente fundamentada na teologia reformada: justificação, eleição, santificação, etc., este entendimento de povo eleito, ajudou a desenvolver uma doutrina de Reino de Deus que transformou a sociedade.

4. Uma confissão de fé própria, que seria chamada “Os 39 Artigos da Religião,” e o Catecismo. Cada igreja protestante nacional desenvolvia sua própria no século 16 e 17. Ainda hoje deve ser subscrito pelos candidatos a ser ordenados, conforme ao Canon A5 da Igreja de Inglaterra.

5. Os dois sacramentos instituídos pelo nosso Senhor, Jesus Cristo, sendo a Santa Ceia celebrada nas duas espécies e a presença real (espiritual) de Cristo.

6. A igreja governada pelas Convocações (Sínodos ou Concílios), reconhecendo que os mesmos devem submeter-se à autoridade das Escrituras e que tem errado no passado, podendo errar novamente. Os Sínodos estão representados pelos bispos, ministros e a igreja através dos delegados leigos.

7. O papel essencial dos leigos na vida e ministério da igreja, participando nela ativamente em cada nível da igreja. Os leigos tem sido, e ainda são hoje, uma das maiores forças missionárias do Anglicanismo no mundo. 

8. Os credos históricos são uma saudável e coerente explicação e declaração da fé que encontramos nas Escrituras, sendo símbolos da unidade dos cristãos através dos séculos e as nações.

9. Um entendimento da igreja surgida da Reforma Protestante, como a verdadeira expressão da igreja primitiva (una, santa, católica e apostólica). Os Reformados não acreditavam que estavam fundando uma nova igreja, mas reformando uma igreja que estava em ruinas.

10. Uma crítica aos erros doutrinários, práticas censuráveis e abusos de poder da Igreja de Roma. Ainda que são muitas as vozes que desejam negar o fato evidente de que o Anglicanismo sempre foi reformado e protestante, o simples fato é que a Igreja de Inglaterra é uma igreja protestante e reformada.

Ainda que não se limitam a estes pontos, eles são comuns sem dúvida. Ao mesmo tempo, a Igreja de Inglaterra tem certas características próprias da mesma. Estas são:

1. Entre os pontos mais controvertidos, esteve a permanência de bispos. Tanto no Sínodo de Dort, como na Assembléia de Westminster, esta questão foi debatida. No Sínodo de Dort, os Anglicanos defenderam o sistema episcopal contra os reformadores europeus. Entretanto, a Assembléia de Westminster somente aprovou o governo presbiteriano pela necessidade política de ter apoio dos escoceses. A Igreja de Inglaterra, como as igrejas luteranas nórdicas, manteve o Episcopado Histórico. 

Porém existiu sempre um debate, se o Episcopado era “essência da igreja” ou era o sistema mais adequado pela sua antiguidade e benefício para a igreja. 

Sobre a Sucessão Apostólica, foi fortemente criticada pelos Reformados Ingleses. Esta questão tão importante hoje entre os “anglicanos continuantes,” “anglicanos independentes” e certo setores da Comunhão Anglicana, nunca foi de suma importância para os Reformadores. Somente voltou a ser colocada no século 19, devido a duas questões essenciais: (a) Roma publicou um edito onde não reconhecia as ordens da Igreja de Inglaterra, como válidas até hoje, e (b) o surgimento dos anglo-católicos que enfatizaram fortemente esta questão até que alguns anglicanos, hoje, tem posições semelhantes à Igreja de Roma nesta questão.

2. O Livro de Oração Comum tem se convertido em um documento essencial ao Anglicanismo. Hoje, não se pode falar de Anglicanismo, sem falar do LOC. O LOC é um manual de culto onde encontramos a ordem de cultos necessários para a vida da igreja. Contudo, a Igreja de Inglaterra foi a única igreja reformada e protestante que elaborou um manual tão completo e que impactou tanto a igreja. Interessante é que as reformas litúrgicas acontecidas nas igrejas metodistas, luteranas e presbiterianas a partir da década de 1980, tem sido influenciados pela liturgia anglicana.

Agora bem, o LOC é mais que um manual de culto, ele forma também a doutrina da igreja, porque cada oração, frase, instrução, está orientada e guiada pelas próprias Escrituras e a doutrina da igreja.

O uso do LOC tem sempre tido três correntes: a igreja baixa (uso dos aspectos essenciais do culto, enfatizando sobretudo a pregação da palavra e a conversão), a igreja alta (uma grande preocupação em todos os aspectos da liturgia e um culto elaborado e rico em simbolismo) e a igreja média (a linha oficial desenvolvida a partir da aprovação do LOC 1662). 

Estes três grupos não devem ser confundidos com os movimentos evangélicos (século 18), anglo-católicos (século 19) ou liberais (século 19 e 20) que são posteriores. 

3. Isto nos leva a um terceiro ponto. A Igreja de Inglaterra elaborou uma confissão de fé mais aberta que fechada o que permitiu vários grupos diversos conviver dentro dela. Isto só foi quebrado pelos Católicos Romanos no século 16 e “os Puritanos versus os Laudianos” no século 17.

A guerra civil inglesa e a vitória dos Puritanos causou que, depois da restauração, se promoveram aqueles bispos e ministros que mostrassem menos radicalismos, causando à Igreja de Inglaterra entrar em uma estagnação espiritual sem igual que somente seria quebrada pelo avivamento evangélico do século 18, liderado pelos irmãos e reverendos Wesley e o Rev. Whitefield.

A Igreja de Inglaterra conseguiu conviver com diversas expressões com maior harmonia e menor conflito que os irmãos presbiterianos, reformados, metodistas e luteranos. Isto tem sido mais positivo que negativo, mas causou que não se tomassem as medidas adequadas para frear o movimento ritualista e romanizante do século 19 e o liberalismo em certas regiões no século 20. Contudo, existe uma verdadeira caridade na diversidade de dons, ministérios e visões na Igreja Anglicana que tem enriquecido o espirito anglicano, como nenhuma outra igreja reformada.

Estas são algumas das características essenciais do Anglicanismo que diferenciam das outras igrejas reformadas. Seguramente, podemos encontrar outras características, mas estas são importantes para desenvolver o jeito anglicano.

Portanto, ser Anglicano significa ter estas características:

  1. A primazia das Escrituras, o ensino bíblico e a pregação expositória.
  2. O Culto formado pelo LOC.
  3. O formulário Anglicano: os 39 Artigos da Religião, o Catecismo e o Ordinário (culto de ordenação).
  4. A Trindade, como centro da teologia, culto e vida da igreja, expressada nos credos universais.
  5. O Governo Sinodal da Igreja, onde estão representados os leigos, os ministros e os bispos.
  6. O triplo ministério de Bispo, Presbítero e Diácono.
  7. Uma igreja local (paróquia), uma igreja particular (diocese e igreja nacional) e uma igreja global, enfatizando a importância essencial e central da paróquia na vida da igreja.
  8. Diversidade na unidade, e colaboração com outras igrejas reformadas.
  9. Os dois sacramentos instituídos por Jesus Cristo.
  10. Uma igreja católica e reformada; em outras palavras, a Igreja Inglesa primitiva reformada das corrupções, erros e abusos da Idade Média.
  11. Apaixonados pelas missões, a evangelização, o discipulado, a justiça social e o desenvolvimento social.
  12. Aberta às pessoas, aos homens e as mulheres, aos povos, às culturas, às nações e às línguas, aprendendo juntos o que significa ser cristão no século 21.

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