Querido Agostinho - O Capitão das Nossas Almas!
Rev.
Marcelo Lemos
Meu
caro Agostinho, escrever
aquela primeira carta foi um prazer, e hoje espero continuar
nosso diálogo. Quanta
alegria receber notícias de seu progresso espiritual.Render-se
inteiramente à Graça de Deus é algo... doloroso. Mas, por si só,
isso não é um paradoxo? É quase irônico.
Porque que contentamento maior para a alma saber que toda sua
esperança reside unicamente em Cristo? No entanto, nossa velha
natureza se sente humilhada perante sua própria nulidade espiritual.
Somos menos que irônicos, somos risíveis. Com
nossos lábios confessamos que “estávamos
mortos em delitos e pecados”, mas com o
coração alimentamos o orgulho de ter, de alguma forma, cooperado
com a Graça de Deus, e que podemos
seguir em frente com nossas barganhas.
Nada
nos humilha mais que a Graça de Deus. William Ernest Henley,
poeta, foi talvez quem melhor expressou a blasfêmia humanista, em
seu poema Invictus:
Do
fundo desta noite que persiste
A me envolver em breu - eterno e espesso,
A qualquer deus - se algum acaso existe,
Por mi’alma insubjugável agradeço.
A me envolver em breu - eterno e espesso,
A qualquer deus - se algum acaso existe,
Por mi’alma insubjugável agradeço.
Nas
garras do destino e seus estragos,
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.
Além
deste oceano de lamúria,
Somente o Horror das trevas se divisa;
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta, nem me martiriza.
Somente o Horror das trevas se divisa;
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta, nem me martiriza.
Por
ser estreita a senda - eu não declino,
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Eu sou dono e senhor de meu destino;
Eu sou o comandante de minha alma.
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Eu sou dono e senhor de meu destino;
Eu sou o comandante de minha alma.
Eis
aí a mais negra face do nosso orgulho, que não apenas o incrédulo
Henley lançou contra o
rosto
do Cristo, mas também uma multidão enorme de cristãos. De palavras
são escravos de Cristo, mas no mais profundo do ser cantarolam: “Sou
senhor do meu destino, e capitão da minha alma”.
Por
isso, as últimas notícias que tive de você me soam maravilhosas, e
louvo ao Senhor por tudo. Recentemente
meu bispo – Josep
Rossello
– ao ouvir alguns desabafos, comentou algo
como:
“Olha,
fico impressionado que depois de tudo isso você não seja um ateu!”.
De fato, é impressionante. Mas não é impressionante porque eu fiz
algo impressionante. Muito pelo contrário – é impressionante
justamente porque de onde nada se poderia esperar, onde abundou o
pecado, “superabundou a graça”. Vale
para a minha vida, vale para a sua também.
Mudando
de assunto, há
em
sua segunda carta, algumas questões mais complexas, e que fogem ao
proposito dessa correspondência que estamos tendo, de
modo que precisarei tratar delas separadamente.
Todavia,
o cerne do que te aflige é o que eu chamo de catolicidade da fé.
Pois não existe mais que uma Igreja de Cristo. Porque não existe
mais que uma fé, um
Senhor, e um batismo.
Todavia,
dentro do Cristianismo
há
diversas tradições. Infelizmente, os evangélicos modernos tem
alimentado a ideia de que, fora do evangelicalismo não há salvação.
Como
se o Cristianismo fosse uma fabrica de biscoitos, onde todos
saem da
linha de produção com a mesma cara e o mesmo sabor, feitos
Traquinas de chocolate.
Não é assim. Certamente existem doutrinas fundamentais, mas também
existem doutrinas secundárias, que não deveriam nos afligir, antes
deveriam nos fazer exercer a caridade.
Não
foi Santo Agostinho quem nos ensinou “no
essencial, unidade; na dúvida, a liberdade; em tudo, a caridade”?
A
fé cristã é católica, ou seja, universal. Significa que o
Cristianismo não é moldado ou limitado por
uma cultura ou povo. Podemos
ver isso no Primeiro Concílio da Igreja, em Atos 15. Havia ali um
grande conflito entre a Igreja de Jerusalém e as Igrejas gentílicas.
Muitos judeus achavam que os gentios deveriam aderir à cultura
judaica, mas Paulo pensava que não. Depois da decisão do Concílio
ficou acertado que, mantido
aquilo que era essencial a fé, os
cristãos gentios
poderiam viver dentro de sua própria cultura, enquanto os cristãos
judeus mantinham seus costumes para
si.
“Porque
pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não vos impor maior encargo
além destas coisas necessárias: Que
vos abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da
carne sufocada, e da prostituição; e destas coisas fareis bem de
vos guardar. Bem vos vá” (Atos
15. 28-29).
Observe
que a decisão do Concílio não ordena que eles tenham
fé em Cristo, nem que obedeçam aos Dez Mandamentos. O que se
explica facilmente, pois esses gentios já eram cristãos e conheciam
seus novos deveres. Ou seja, a fé deles
em Cristo não está sendo questionada. O problema que o Concílio
debateu foi sobre a necessidade de todo mundo seguir a mesma cultura,
os mesmos costumes. E a decisão foi:
desde que vocês não pratiquem aquilo que há de pecaminoso na sua
cultura, bem vos vá, não se preocupem com a cultura judaica.
Mas,
temos ignorado essas
recomendações. E isso me parece
acontecer por dois motivos básicos. Primeiro, nós ignoramos o que é
a doutrina cristã. A doutrinação das pessoas hoje é feita através
de musiquinhas açucaradas, e pregadores 'profissionais', e assim
neófitos são doutores de neófitos, o que permite que os novos
evangélicos aceitem qualquer coisa como sendo fé cristã. Some
a isso um segundo fator: desconhecendo o
que é a fé cristã, e a própria história eclesiástica, muitos
acabam confundindo “Igreja” com a “placa” da sua Igreja.
Me
permita ilustra isso com um exemplo pessoal. Recentemente viajei para
Belo Horizonte, onde já morei e fiz bons amigos. Quando cheguei na
cidade recebi uma notícia no mínimo curiosa: alguns pastores
estavam dizendo aos seus membros que eu havia me tornado “padre”.
Na verdade, se minha memória ainda não me deixou na mão, sou
apenas um diácono (risos). E não sou católico romano, sou um
anglicano reformado, onde não há padres... No entanto, ser membro
de uma igreja histórica e litúrgica é, ao que parece, uma grande
heresia para essas pessoas. O que me diz
muito da fragilidade teológica e
histórica que tanto prejudica os evangélicos no Brasil.
Espero
não ser mal compreendido. Não estou dizendo que não devemos
defender a fé, e ignorar os erros que surgem diante de nós.
Verdadeiramente Cristo nos alerta sobre as falsas doutrinas e falsos
mestres. E
aí está um bom momento para seguirmos o concelho de St. Agostinho.
Naquelas doutrinas que são fundamentais para o Cristianismo, deve
haver unidade, pois quem nega alguma doutrina fundamental é herege.
Mas há também doutrinas que são secundárias, algumas são até
sem importância; devemos tolerar e deixar os outros exercerem a
liberdade que tem em Cristo. E
acima de tudo, devemos amar uns aos outros.
Dito
isso meu conselho ao irmão é, mantendo firme a fé cristã, não se
preocupe tanto com definições sofisticadas – pelo menos por um
tempo. Exercite-se em jogar-se completamente nos braços de Cristo,
até que elimine completamente de seu coração qualquer esperança
de poder confiar em si mesmo. Quando
Henley escreveu o seu poema, estava tirando um retrato fiel das
nossas almas. Cada
um de nós é autor daquele poema.
Em
algum momento, todos nós lançamos a mesma blasfêmia contra os
céus, e somos culpados. Somente seremos libertos quando, convictos
de nossos
pecados, lançarmos aos céus o mesmo grito desesperado de S. Paulo:
“Miserável
homem que sou! Quem me livrará do corpo dessa morte?”
(Romanos 7. 24).
Apenas
quando
Deus nos revelar isto,
nossa inteira dependência, abandonaremos por inteiro o desejo de
capitanear nossa alma e nosso destino. Nunca
mais nos renderemos aos encantos de nosso Titanic interior. Nossos
poemas favoritos serão como os de Cesare
Turazzi,
o grande poeta reformado brasileiro:
“Pois,
assim como Zaquel somos pequenos e miseráveis,
usamos
máscaras, temos muralhas de soberba,
somos
o avesso da bondade, festa de abominações,
somos
muito, e não pouco, deprimentes;
Mas,
caso ELE nos renasça, refaça,
regenere...
então viveremos para sempre
com
o Senhor do tempo – seremos quadros mudados,
pediremos
novas coisas, teremos novas amizades,
sentaremos
no tapete da eternidade não somente por quinze anos
mas
sim para sempre, com o próprio Tapeceiro”.
E
então, humilhados aos pés do Gólgota, nossa alma erguerá os olhos
e verá a Cristo, o único que, desde sempre e para sempre, é
realmente Invictus!
Soli
Deo Gloria! Amém!
"Quanto a isso, temos muito que dizer, coisas difíceis de explicar, porque vocês se tornaram lentos para aprender. De fato, embora a esta altura já devessem ser mestres, vocês precisam de alguém que lhes ensine novamente os princípios elementares da palavra de Deus. Estão precisando de leite, e não de alimento sólido!
ResponderExcluirQuem se alimenta de leite ainda é criança, e não tem experiência no ensino da justiça.
Mas o alimento sólido é para os adultos, os quais, pelo exercício constante, tornaram-se aptos para discernir tanto o bem quanto o mal." Hebreus 5.11-14.
"Aquele que considera um dia como especial, para o Senhor assim o faz. Aquele que come carne, come para o Senhor, pois dá graças a Deus; e aquele que se abstém, para o Senhor se abstém, e dá graças a Deus.
Pois nenhum de nós vive apenas para si, e nenhum de nós morre apenas para si.
Se vivemos, vivemos para o Senhor; e, se morremos, morremos para o Senhor. Assim, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor.
Porque está escrito: " ‘Por mim mesmo jurei’, diz o Senhor, ‘diante de mim todo joelho se dobrará e toda língua confessará que sou Deus’".
Assim, cada um de nós prestará contas de si mesmo a Deus. Portanto, deixemos de julgar uns aos outros. Em vez disso, façamos o propósito de não colocar pedra de tropeço ou obstáculo no caminho do irmão.
Pois o Reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo;
aquele que assim serve a Cristo é agradável a Deus e aprovado pelos homens. Por isso, esforcemo-nos em promover tudo quanto conduz à paz e à edificação mútua."
Romanos 14.6-8,11-13,17-19
Agostinho.
ResponderExcluirMeu querido irmão, rev. Marcelo. Te agradeço mais uma vez por investir tempo e tanta paciência em mim que, como citou o Pedro Henrique aqui em cima, estando em altura de ser mestre me fiz menino, necessitando voltar aos princípios elementares da fé. Me sinto sempre incentivado a continuar trilhando o Caminho, á me apressar mais um pouco, quando leio suas respostas às minhas cartas. Espero poder contar um pouco mais - na verdade bastante (risos)- com a sua bondade em me doar tempo.
Um grande abraço.
Agostinho.