Os Anjos, a Igreja, e o Culto Cristão



Por Marcelo Lemos

“O SENHOR tem estabelecido o seu trono nos céus, e o seu reino domina sobre tudo. Bendizei ao SENHOR, anjos seus, magníficos em poder, que cumpris as suas ordens, obedecendo á voz da sua palavra. Bendizei ao SENHOR, todos os seus exércitos, vós, ministros seus, que executais o seu beneplácito” (Salmos 103.19-21).

Não escrevo como doutrina, mas uma tese interpretativa. Já havia me proposto a escrever sobre o assunto antes, mas devido aos afazeres fui adiando até quase esquecer-me da tarefa. No entanto, algumas imagens que vi recentemente, tiradas de um culto evangélico muito popular, me motivaram a encarar a tarefa deste texto. Os leitores sintam-se absolutamente a vontade para usarem comentários para corroborar ou questionar o que lerão a seguir.

Os anjos e o culto cristão. Esse é meu tema hoje. Teriam os anjos alguma participação no serviço de adoração que a Igreja constantemente oferece a Deus? Investigaremos tal questão hoje, sem nenhuma pretensão de dar a última palavra.

Minha primeira observação é de advertência. O apóstolo S. Paulo tinha uma clara preocupação com o fascínio que seres angelicais podem exercer sobre as pessoas. Ele menciona, em termos hipotéticos, de um anjo do céu vindo anunciar “outro evangelho” (Gálatas 1:8). Não cremos que Paulo acreditasse na hipótese de um anjo de Deus cometer tal desatino e atrocidade, mas que como tal fosse recebido um anjo maligno tentando se passar por mensageiro do Senhor: “E não é maravilha, porque o próprio Satanás se transfigura em anjo de luz” (II Coríntios 11.14).

A ideia de seres angelicais é fascinante e perigosa. Paulo sabia que muitas heresias podiam ser introduzidas na Igreja com pretexto de culto aos anjos. “Ninguém vos domine a seu bel-prazer, com pretexto de humildade e culto dos anjos, metendo-se em coisas que não viu; estando debalde inchado na sua carnal compreensão” (Colossenses 2.18). Tudo isso nos é solene advertência. Acreditamos que algumas imagens que ora publicamos ilustrem algo do perigo que o Novo Testamento teme.

  


Entretanto, tais advertências não são todo o ensino Bíblico sobre os anjos. A passagem mais intrigante para nosso texto hoje é I Coríntios 11.10. “Portanto, a mulher deve ter sobre a cabeça sinal de poderio, por causa dos anjos”. Que isso nos ensina?

Matthew Henry nos apresenta duas teorias. Primeiro, a possibilidade de que tais anjos fossem “maus”. Neste caso, o sinal de decência seria como dizer ao Diabo que a Igreja restaurava a ordem das coisas, aceitando a submissão feminina, quebrada na Queda (I Tim. 2.14). Parece ser a interpretação do próprio Henry, “acredito que os anhos maus se misturam em todas as assembleias cristãs, por isso as mulheres devem usar o símbolo de seu pudor e submissão, que naquela época e país, era um véu”. A segunda hipótese lembrada por Henry é que Paulo pode estar se referindo a anhos “bons”. Judeus e cristãos, explica Henry, acreditam que os anjos de Deus assistem em suas assembleias, de modo que os cristãos devem policiar toda indecência na adoração a Deus. E Henry termina com uma nota prática: “Devemos aprender a nos comportar nas assembleias públicas para o culto divino, de modo a expressar reverencia a Deus” (1).  

John Gill, apesar de citar as outras interpretações, faz uma escolha diferente de Henry; prefere interpretar como uma referência aos anjos “bons”: “É melhor compreendê-los como anjos bons que frequentam as assembleias dos santos, e observam o comportamento dos adoradores, daí as mulheres precisarem cobrir a cabeça perante eles... Está de acordo com o pensamento judaico sobre anjos que assistem as orações públicas”. E Gill, que em seus comentários parece ter um bom conhecimento da tradição rabínica, passa a contar alguns episódios onde os judeus relatam que “anjos ministradores” participavam de momentos de exposição das Escrituras (2). Gill também menciona a interpretação que vê tais anjos em sentido figurado, como que referindo-se aos Ministros da Igreja, chamados de “anjos” no Apocalipse.

Calvino também faz menção a essa última interpretação, mas a rejeita de pronto: “Como profeta Malaquias (2:7) chama os sacerdotes de anjos de Deus, alguns são da opinião que Paulo fale deles aqui, mas os ministros da Palavra não têm tal termo aplicado a si automaticamente – ou seja, sem uma declaração adicional do fato”. Calvino diz que é melhor interpretar em seu sentido “apropriado”, ou seja, que Paulo esteja se referindo aos anjos.

E porque elas devem se cobrir? Calvino diz que não o fazendo elas estariam assumindo uma posição de autoridade na Igreja que não lhes pertencia, e não apenas Cristo, mas também seus anjos seriam testemunhas de tal escândalo (3). Da mesma opinião compartilha John MacArthur, que inclusive cita S. Mateus 18.10 como prova de que os anjos de Deus atentam, ou são de algum modo, afetados por violações da vontade do Senhor entre o povo de Deus. MacArthur diz que os anjos “velam pela Igreja” (4).


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Os anjos atentam para o trabalho da Igreja? “Para que, agora, pela Igreja, a multiforme sabedoria de Deus seja conhecida dos principados e potestades nos céus” (Efésios 3.10). “Conjuro-te, diante de Deus, e do Senhor Jesus Cristo, e dos anjos eleitos, que, sem prevenção, guardes estas coisas, nada fazendo por parcialidade!” (I Timóteo 5.21). “Aos quais foi revelado que, não para si mesmos, mas para nós, eles ministravam estas coisas que, agora, vos foram anunciadas por aqueles que, pelo Espírito Santo enviado do céu, vos pregaram o Evangelho, para as quais coisas os anjos desejam atentar” (I Pedro 1.12). Ou, “coisas que até os anjos desejam observar (NVI) (5).

Mas, seriam os anjos apenas expectadores? “Mas a qual dos anjos disse jamais: Assenta-te a minha direita até que eu ponha os teus inimigos por escabelo de teus pés? Não são todos eles espíritos ministradores, enviados para servir a favor dos que hão de herdar a salvação?” (Hebreus 1.14). São os anjos, portanto, muito ativos (6) na economia da Salvação. Em Apocalipse 12.7-10, os anjos são apontados como defensores da Igreja, lutando contra os exércitos malignos que visavam destruir a obra da Igreja.

“E houve batalha no céu: Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão; e batalhavam o dragão e os seus anjos, mas não prevaleceram; nem mais o seu lugar se achou nos céus. E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o diabo e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele. E ouvi uma grande voz o céu, que dizia: Agora está a salvação, e a força , e o reino do nosso Deus, e o poder do seu Cristo; porque já o acusador de nossos irmãos é derribado, o qual diante do nosso Deus os acusava de dia e de noite!” (Apocalipse 12.7-10).

Sim, estão os anjos a serviço (7) da Igreja. De modo que, não apenas atentam para os fatos envolvendo a Igreja, como também podem estar envolvidos nestes fatos, ou ao menos, em alguns deles.

“A partir desta passagem (Hebreus 1.13,14) os fiéis recebem grande consolo, pois ouvem que as hostes celestiais são designadas a eles, como ministros, a fim de assegurar sua salvação... Daí procede ainda uma singular confirmação de nossa fé: que nossa salvação, sendo defendida por tais guardiões, está além do alcance do perigo” (João Calvino).

Não nos parece, portanto, temoroso situarmos os anjos em nossas assembleias. Eles assistem e, quem sabe, também atuam em nosso favor em nossos serviços de adoração a Deus. Podemos rastrear tais atuações angelicais desde os dias do Antigo Testamento.

“E sonhou: e eis era posta na terra uma escada cujo topo tocava nos céus; e eis que os anjos de Deus subiam e desciam por ela. E eis que o SENHOR estava em cima dela... Acordado, pois, Jacó do seu sono, disse: Na verdade o SENHOR está neste lugar, e eu não sabia. E temeu e disse: Quão terrível é este lugar! Este não é outro lugar senão a Casa de Deus; e esta é a porta dos céus” (Genesis 28.   12-17). Por isso edificou Jacó naquele lugar uma Altar ao Senhor. A mesa imagem de anjos subindo e descendo é aplicada ao ministério terreno de Cristo (S. João 1.51).

“Logo, para que é a Lei? Foi ordenada por causa das transgressões, até que viesse a posteridade a quem a promessa tinha sido feita, e foi posta pelos anjos na mão de um medianeiro” (Gálatas 3.19). Este texto é algo surpreendente, nos fala da presença dos anjos no momento que Deus deu a Lei a Moisés! Tal fato era aceito muito abertamente na Igreja Primitiva. “Vós que recebestes a Lei por ordenação dos anjos e não a guardaste!”, diz Estevão a seus acusadores (Atos 7.53). “Porque, se a palavra falada pelos anjos permaneceu firme, e toda transgressão e desobediência recebeu a justa retribuição” (Hebreus 2.2). Ainda que o próprio Deus, em Teofania, estivesse junto a congregação (“ekklesia”) no deserto (Atos 7.38), esses textos estão nos ensinado que a entrega da lei foi por meio do ministério “dos anjos”.

Não apenas na entrega da Lei participaram os anjos, mas também nos sacríficos que se ofereciam a Deus. Sim, pois Deus ordena que dois querubins sejam colocados diante do propiciatório, um de frente ao outro. Eles são colocados de modo a olharem para o propiciatório, ou seja, para o sacrifício que ali é apresentado a Deus (Êxodo 25.18-20). Eles não participam a expiação, mas estão presentes – assim como no Novo Testamento os anjos acompanham o ministério de Cristo, inclusive se alegrando com a conversão de dos pecadores. “Assim vos digo que há alegria diante dos anjos de Deus por um pecador que se arrepende” (Lucas 15.10). Não participam da obra da salvação em si, mas a assistem. São testemunhas. Não deixa de ser interessante observar que na Ressurreição, momento em que os anjos são enviados por Deus para pregar aos discípulos, Maria pode ver dois anjos sentados na “cama” onde Jesus havia sido colocado, “um à cabeceira e outro aos pés” (João 20.12). Assim como no propiciatório, um de cada lado, contemplando (8) a obra expiatória (9).

Chegamos então ao culto celestial descrito em Apocalipse 8.2-4. “E vi os sete anjos que estavam diante de Deus, e foram-lhes dadas sete trombetas. E veio outro anjo e pôs-se junto ao altar, tendo um incensário de ouro; e foi-lhe dado muito incenso, para o pôr com as orações de todos os santos sobre o altar de ouro que está diante do trono. E a fumaça do incenso subiu com as orações dos santos desde a mão do anjo até diante de Deus”. Cena semelhante é apresentada em outra cena litúrgica, em Apocalipse 5.8.

O que o Apocalipse coloca diante dos nossos olhos são cenas litúrgicas. Dentro do contexto geral das Escrituras podemos afirmar com segurança que é um antítipo do culto oferecido a Deus pela Igreja na terra, assim como o Templo israelita tipificava o templo celestial. Aproveitando-nos das palavras do Onézio Figueiredo, o culto é uma assembleia de antecipação escatológica.

“Para Israel o templo era o trono de Deus na terra, local de sua presença, sinal de sua glória, atestado de seu governo sobre seu povo, ponto de "encontro" entre o Rei dos reis e seus súditos. Esta imagem foi tão forte que constava nas visões apocalípticas tanto do Velho como do Novo Testamentos.

Este trono terrestre veio a ser o símbolo do celeste, pois nele estava o Santo dos Santos, onde pousava a glória (Shekinah) de Deus. Ao penetrar o templo, o israelita era possuído de uma reverência indescritível, pois significava estar na Casa do Senhor, na presença do Deus altíssimo. Seu impulso era o de prostrar-se, confessar e adorar. Os profetas que mostraram, em visões, o tabernáculo celeste, davam, na verdade, um conteúdo escatológico ao culto no templo, tabernáculo de Deus entre homens.


O culto, portanto, é uma assembléia de antecipação escatológica. Vejam que Cristo lhe dá esta dimensão quando diz, na instituição da Santa Ceia, substituta da Páscoa judaica: "Pois vos digo que nunca mais a comerei, até que ela (a Páscoa) se cumpra no reino de Deus" (Lc 22.16). Toda vez, pois, que se celebra a Santa Ceia o quadro simbólico do culto sacrificial se repete e uma antevisão escatológica se realiza. Onde está o santuário, Jesus Cristo, aí estão seus redimidos. Essa realidade mística se configura na reunião dos crentes, sempre em Cristo, em um determinado local separado e consagrado para tal fim, o templo. O valor do templo reside no que ele contém, a dos santos, e no que nele se realiza, o culto comunitário em espírito e em verdade”.

Sendo o culto prestado a Deus uma antecipação escatológica, segue-se que o retratado nas liturgias do Apocalipse, apesar de seu simbolismo, retratam uma realidade: os anjos apresentando a Deus as orações da Igreja.

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(4) Bíblia de Estudo MacArthur, página 1543.

(5) παρακύπτω.Há, pelo que consegui apurar, 8 ocorrências do termo no Novo Testamento. Ele pode ser traduzido como “olhar, observar, atendar”, e também como “abaixar-se”, com o sentido de examinar algum fato (Lucas 24.12; João 20.5; João 20.11). Não seria o caso, portanto, de os anjos “se abaixarem” para contemplar o trabalho da Igreja, assim como os discípulos se abaixaram para comtemplar o túmulo vazio?

(6) “Não são todos os anjos espíritos ao serviço de Deus, que lhes confia missões para o bem daqueles que devem herdar a salvação?”(Tradução Ave-Maria). “Não são todos eles espíritos encarregados para um serviço, enviados para servir àqueles que deverão herdar a salvação?”(Edição Pastoral).

(7) Calvino chama atenção para o fato de que os anjos apresentados como servos de seres inferiores - os homens - aponta para sua inferioridade a Cristo, que é Senhor de todos, homens e anjos. No entanto, que seu serviço, como é prestado a Deus e não aos homens por si, é digno de honra.  

(8) Alguns autores acham que estes dois anjos foram colocados aqui apenas para criar uma harmonia com os outros Evangelhos, que parecem divergir sobre a quantidade de anjos na cena com Maria. Fora isso, “não tem maior finalidade” sua presença aqui (Bíblia Comentada – Professores de Salamanca). Pensamos que tal interpretação não honra as Escrituras. Evidentemente que não queremos com isso dizer que é preciso atribuir significado simbólico a cena, mas apenas que rejeitamos a tese de ser uma interpolação com fins de amenizar contradições.

(9) Sugestão que encontramos em John Gill, “um a cabeceira, outro aos pés... também pode nos lembrar dos dois querubins, colocados um em cada extremidade do propiciatório (Êxodo 25.19)”. Já Calvino afirma que a posição dos dois anjos “aponta que o Evangelho seria pregado a partir do Oriente para o Ocidente” – o que nos parece interpretação um tanto alegórica.

(10) Trecho de livro publicado em “Conta-Gotas de Sabedoria”, aqui no Olhar Reformado.

Um comentário :

  1. Graça e paz do SENHOR aos irmãos do blog...

    Fantástico! Estava esperando ansioso por este artigo, desde aquela discussão do véu! Valeu a pena esperar... vou tratar agora de discutir um outro assunto do blog (Quem sabe não rola mais um artigo abençoado para esclarecer dúvidas...rsrsrsrs)

    Concordo com a posição do irmão Calvino e do irmão MacArthur... realmente é por submissão às autoridades eclesiásticas que as mulheres deveriam respeitar o rito do véu, considerando o contexto daquela igreja.

    Que o SENHOR JESUS o abençoe e o preserve em humildade meu irmão!
    PS: O argumento dos querubins no propiciatório foi fenomenal!

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